quarta-feira, 21 de maio de 2014

Crónica Rosário Breve - Palavras cruzadas  por Daniel Abrunheiro

 “Uma vida em segunda-mão não tenta ninguém.”
Di-lo Katharina von Bülow em A Alemanha entre Pais e Filhos, tradução que as Edições Cotovia publicaram em 1988 entre e para nós.
Na banca ao lado daquela miniFeira do Livro, por os idos do Março passado, encontrei também o José Cardoso Pires de Dispersos 1 – Literatura, que a Dom Quixote nos propôs em Maio de 2005. A páginas 255 desse caderno póstumo, recolho um ditado bretão que o Autor de O Delfim achou por bem nele incluir: “Até aos vinte anos, o homem tem a cara que Deus lhe deu, daí em diante aquela que merece.”
Diz então Katharina:
Zé, olha que ‘uma vida com sentido não é a sobrevivência pura e simples. Acomodar-se às coisas é renunciar.’
E ele assim para ela:
A quem o dizes, Katy, a quem o dizes!  ‘O repouso do guerreiro mata o guerreiro, é essa a sua ingenuidade.’ Mas olha que ‘a felicidade individual requer planificações políticas amplas e ambiciosas. O burocrata, o carreirista da governação ou o legislador provinciano têm pavor aos projectos vastos’.
E ela assim para ele:
Verdade, meu amigo. ‘O país só tem sentido se lá possuirmos uma casa. E uma casa só tem sentido se abrigar uma família.’
Zé:
Katy, a propósito destas coisas inteligentes que aqui cruzamos para gáudio de um cronistazito de comarca, ouviste dizer que pertinho de aqui onde estamos, ali para riba do Tejo, lixaram o Melão?
Katy:
Não me digas! O Tó? Fizeram-lhe isso?
Zé:
Fizeram.
Katy:
Trinta e um, então.
Zé:
31? Isso é nome de fadinho, cá pelas minhas bandas. Mas q’ais 31?
Katy:
O Tó mais os 30 que a ViverSantarém vai despedir.
Zé:
Essa ’tá boazinha, sim senhora. A menina ajeita-se a fazer descontas, já vi.
Katy:
Que fará ele agora?
Zé:
Com aquele nome, sempre é gajo para arranjar emprego em Almeirim.
Katy:
Não sejas mauzinho. Estávamos a conversar tão bem lá em cima, com datas de edição e páginas e tudo.
Zé:
Pronto, a graçola sempre nos serve de escape ao facto de a política ser a ‘manobra do dia-a-dia, solução a reboque dos acontecimentos, que é, em termos de administração, o caminho tradicional dos providencialistas e dos caciques domésticos’.
Katy:
‘Ontem pertencíamos a uma nação, hoje somos caça.’ Acho mesmo isto, Zé: ‘Nós somos caça, acasos, heranças absurdas.’
Zé:
Isso está bem posto, rapariga. ‘O homem contemporâneo que se julga integrado numa idade de progresso (…), pobre dele, vive paredes-meias com a contradição elementar e o anacronismo.’ É como tu mesma disseste, menina: ‘De eleitores cobardes, democratas dóceis’…
Katy:
Sabes tu? Tenho por vezes ‘a impressão de andar ao lado dos meus passos’…
Zé:
Também me acontecia muito, mas agora menos, que estou morto.
Katy:
Não de todo, Zé, de todo não: alguém nos faz ’inda falar. Nos faz ainda ser, portanto.
Zé:
Valha-nos isso. Somos o que merecemos – como os bretões. E já não temos vinte anos.
Katy:
Tudo bem, desde que vivamos em primeira-mão.
Zé:

Não digas isso assim, que rima com Melão.

Sem comentários:

Enviar um comentário