O pico da montanha reverbera no
vidro nítido do ar-longe. De cá, mulas & homens, provisões & desejos.
Mantimentos longamente acumulados na ideia. Planos que entretiveram vários
invernos. Homens & animais em transe de libertação.
Na estalagem toda de madeira,
esperam. Toda de madeira excepto a estrutura lareira-chaminé. A mesa longa
& larga pode albergar dezasseis comedores, mas os animais comem lá fora.
A Primavera demora o tempo de que
precisa. Eles, homens, também; elas, mulas, também. Há um cão: chama-se Rafael
e não é moço já.
Os estalajadeiros são o casal
Gottlieb: Hermann Gottlieb tem 67 anos e é gordo; Marlene Gottlieb (née Zweig) tem 62 anos e é magra. Dão-se
bem, comungam o silêncio retórico de muitos anos de matrimónio construtivo.
Os homens são oito.
Gunther Schwarz é sueco, 28 anos,
foi mecânico (de bicicletas).
Telemann Kaltz é alemão, 42, foi
aviador (de copos, não de aviões).
Claudio Baresi é suíço do cantão
italiano, tem 50 anos, foi pediatra.
Arménio Jordão, português de
Sintra, 39, foi rico.
Jelavert Zubizarreta, basco e de 19
anos, estudou enfermagem.
Thomas Osgood é inglês de
Yorkshire, 64, foi bibliotecário.
Oleg Mikhaylichenko é russo, 74, foi
professor-primário.
E o sénior é Astor Nicopolidis, grego, 85, que
não se recorda (ou pretende não recordar-se) do que fez & foi na vida
activa.
(Nota do redactor: o
tempo verbal que antecede todas & cada uma das oito profissões é o
pretérito-perfeito. Não é mera coincidência nem estilístico descuido. É de
propósito. E é de propósito porque a ser não voltam aquilo que foram. Estão, os
oito, em modo & condição pré-terminal da doença-do-caranguejo. Dispõem de umas muito poucas semanas para que o cancro de vez os
desembarace do fardo do nascimento. E é por isso que, supra, foi escrito: “em
transe de libertação”.)
E os animais – também? Sim. Também. Chegando os
dezasseis seres à montanha, as oito mulas tornar-se-ão libertas. Os homens
acamparão para continuar à espera. Quando lá no sopé da majestosa elevação, não
terão forças já para qualquer veleidade andina, alpínica ou himalaica. Mas também
não há-de ser isso a desconfortá-los, ou a frustrá-los, ou a (di)feri-los. Já
só hão-de esperar a espera mesma. Estas coisas são de nenhuma volta a dar-lhes.
Estes oito só diferem por ter decidido esperar andando.
Reuniram-se em Istambul, perto do sítio onde ainda
agora há poucos dias o sacana dum islamita-radical-suicida deflagrou uma dezena
de turistas. Demoraram-se dois dias & duas noites na antiga capital
imperial que foi Constantinopla depois de haver sido Bizâncio. Depois, vieram
para esta página, perdão, para esta estalagem tão sossegadamente gerida pelos
Gottlieb.
Esta noite, jantaram carne prensada, ervilhas,
sopa de tomate & marzipã. Ei-los derredor-lume, uns tomando café (Gunther,
Claudio, Thomas), outros havendo chá (Oleg, Jelavert) , outros
xarope-de-groselha (Telemann, Astor) – e Arménio, vinho tinto aquecido. Antes
de subirem para dormir, Claudio sugere que cada um escreva ao seu-alguém (se
algum) uma última carta. As oito missivas terão Marlene & Hermann como
fidelíssimos-depositários-da-puridade. Uns dizem que sim (Thomas, Telemann,
Arménio, Gunther), um diz que não (Jelavert), Oleg & Astor respondem que
vão pensar nisso.
Sabe-se agora (sete da manhã mais catorze
minutos) que não será já bi-octogonal a expedição terminal-humana. Não pelas
mulas, que estão robustas. É que já só sete dos homens respiram – posto que
Jelavert, sofrendo de uma marrada mortífera do desespero, se cortou os pulsos
antes de afogá-los no balde que faz a vez de autoclismo (é modesta, a
albergaria gottliébica).
Nem por isso cancelam a expedição. Ao
ar-longe-vidro, a montanha chama-os, um-a-um, pelo nome próprio, à parecença do
que nesta mesma redacção acima se fez aquando das enumerações relativas. E como
à consciência acontece com a rápida ingestão de ar gelado pelas esponjas
pulmonares, o eco amplia os homens: (…)
arzzarzzarzz, altztzztzz, ésiésiési, dãoãoão,
zgudgudgud, xencoencoenco, ólidislidislidis (…)
Pacientes como budas, as mulas
aproveitam para escarvar enquanto esperam, ao passo que o Rafael as azucrina
fingindo que lhes morde as assaz delicadas canelas, cena
que, apesar de tão divertida & tão preciosa, não constará da carta que por
alguma razão Jelavert decidiu não escrever, de si, como se (ou)viu, nem eco
deixando.
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