Vou esta manhã à minha terra. É
pelo funeral de uma senhora-mãe de gente da minha criação. Mais uma, menos uma.
A prova-dos-nove é consabida.
Ainda lá não cheguei. Preparo em
casa a expedição. Preciso de coisas mínimas, que passo a enumerar: lápis,
afiadeira, caderno pequeno, Cesário Verde em edição-de-bolso; sapatos pretos,
casaco melhorzito dos dois que tenho, gorro tapa-orelhas, suspensórios
cor-de-ceroula; pacote de bolachas-baunilha, laranja, rebuçados de anis,
garrafinha de sovaco sem ser com água; moedas para dois cafés, óculos de perder
ao perto & ao longe, número de telefone da minha Senhora escrito em vários
papéis espalhados pelos bolsos, medalhinha-de-São-Cristóvão para afugentar os
azares de andar um dia inteiro fora de casa; cartão de sócio dos Bombeiros,
fotografia de um cão que tive & a que ainda pertenço, lembrança do nome das
ruas primevas, fixação do meu próprio nome para quando, no cemitério, as
mulheres mais velhas me perguntarem qual dos sete da D.ª Hermínia é que eu sou
afinal.
Estou agora a sair de casa.
Frescote das sete da manhã. Gasto a penúltima moeda no primeiro café. Atiro-me
pela beira-rio, faço a azinhaga dos plátanos, saúdo os patos, desemboco na
praça da antiga moagem. Adquiro-me o bilhete, aproveito o jornal velho que
dormia aos pés de um sem-abrigo caído em combate no banco-de-espera da gare,
folheio a perpétua inactualidade do real, como a primeira baunilha. Embarco.
Viagem espacial: vórtice-continuum
feito de estrelas apeadas, berma-árvores velocíssimas, pastagens salpicadas de
ovelhas como poalha de diamantes, colinas-constelações, oficinas-auto com os
nomes dos donos em manchete. Pouca gente na minha nave: um rapazola de phones autistas, um cavalheiro de
hepática amarelidão, um casal sem alegria de o ser e o motorista, cujos tufos
de pêlo peitoral lutam para estoirar os botões da camisa. Pela énemilésima vez,
o meu Cesário ajuda a regateira de verduras a içar a giga do chão.
Estou chegando: eis o Mondego do
Joaquim Jorge. A Cidade, num clarão de postal, faz-me bem de imediato. Conheço
isto tudo. Cada canto me é episódico. Disponho de alguém conhecido por cada rua
onde me vi sozinho. As pombas são as mesmas de há cinquenta anos. Já não há
fábrica de artefactos de borracha, mas a paragem do autocarro é na mesma em
frente a ela. Ali é a fábrica dos bilhetes-de-identidade. Além é onde se matou
o filho do fotógrafo. Mais aquém, a parede da loja de ferragens continua
manchada da sombra que lhe imprimiu a passagem de uma rapariga muito branca,
muito vestida de azul, em 1977. Mas eis que eis o autocarro. Agora sim, muita
gente. Rostos meus: o Serafim da Preciosa, que está reformado dos serviços
municipalizados; a viúva do carteiro Arnaldo, que anda amigada, dizem as
melhores-línguas, com o Antunes da serração; as netitas gémeas de um que foi
polícia e depois preso e depois não se sabe que seja feito dele; e o motorista
ser mulher chapa-me de repente o que isto mudou.
Apeio-me na minha Rua. Estou
pronto.
Fiz bem em deixar a laranja como
paga do jornal ao homem.
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