Sonhei que era José.
Que era José e proprietário senhor
de um solar de, precisamente, sonho.
Finjo que a dormir continuo.
Sonâmbulo cicerone de bom grado V. serei.
Este é o meu Vestíbulo. Ornam-no contadores
de pau-santo, bufete e cadeiras seiscentistas cuja gravidade faz cismar –
cismar no que, objecto, dura; e no que, sujeito, não perdura. Os anjos talhados
em madeira policromada são, como a infância e como a velhice, barrocos. Há
pintura Italiana e há pintura Portuguesa, que o resto da Casa reiterará. Há a
maravilha das faianças nacionais, quando ainda tal indústria cometíamos. Há
tapeçaria de Arraiolos nimbada da ancestralidade de Seiscentos & de
Setecentos.
A Primeira Sala honra a memória do
senhor meu Pai, que no sonho é Carlos. E Malhoa, o nosso Grande José Malhoa,
pintou-o a cavalo: selas pespontadas a veludo & prata, contentes xairéis
& felizes telizes bordados também e ricamente também brasonados – de XVIII.
Madeiras e couros guarnecidos a pregaria.
A Segunda Sala é Sacra: meditabundos
relicários, figuras presépias sob a tutela da Sagrada Família, capa de asparges
& casulas, frontal de altar, mais tessituras arraiolanas.
Átrio e Escadaria acedem ao Andar
Nobre. Andai, vinde comigo, não permitais que a solidão me caustique na
derivação já não de todo adormecida.
Painéis de azulejo português
ruralizam o olhar chacota-vidrado. O patim escadariandante gentil-humaniza o
Visitante feliz. Há cópia, por Hidalgo de Caviedes, do Velásquez de “Los Borrachos” – estamos em família, ó
como eu degustadores da vínica ambrosia! Primeiro e Segundo Andares, todavia,
nos querem. Defiramos deles o apelo.
Formosas porcelanas orientalizam e
indianizam a soporífera visitação nossa. Somos como faunos em bosque enxuto. De
cerce, minha Irmã Margarida olha-nos nos olhos. Carlos & Eugénia alastram
amor nidificado: olhai-lhes, a nós, os Filhos. A minha materAvó é Condessa – de
Podendes. Podendo, sabei que meu paterAvô era já José: como eu & como
Mestre Malhoa.
Impossível, sei-o bem (e não sem laivo
ligeiro de leve angústia o sei), em coisa de oníricos 4240 caracteres (671
palavras, incluindo espaços), sonhar convosco a Casa toda. As casas só são todas, afinal, quando perdidas. As Salas
sobrantes não são labirínticas, isso não são, mas são maduras como frutos
multiplicados: a das Colunas, a de São Francisco, a dos Primitivos, a de
Boileau, a de Parquet, a das Aguarelas, a de Jantar; a Galeria Verde; o Salão
Renascença (ou dos Arraiolos); a formosíssima Biblioteca. Ai! Alma & calma,
todavia: não acordámos ’inda. Mais V. digito um pouco.
Antecâmara de música camarária também
– benévolos fantasmas de quinteto a assolam benignamente: meu Avô Zé com César
MacKee, Lambertini, José Carneiro & D. Luiz da Cunha Menezes. Profusão (e
confusão, talvez; e efusão, decerto) de idades & preciosidades: Soares dos
Reis, Domingo & Márquez, Coypel, Rubens (o Pierre Paul, que temo ainda me
lo roubem), Madrazzo, Stevens; Bordalo, mais Malhoa, Zurbarán, Josefa de Óbidos
(talvez). Substanciais substantivos também: mognos de uma polidez austera,
ferragens douradas como as celestes linfas e como as ninfas fluviais, aguarelas
de águas belas, gravuras assuntando mitologias pagãs fora da jurisprudência
censória do Vaticano, vitrines claras como nórdicos olhos, bustos que sonham
com o resto do corpo, fogão aprazível, relógio mortífero & dois obeliscos à
egípcia. E mármores de veios claros, claro.
Ui, porcelanas de Saxe! (Sou rico,
no sonho; no sonho ao menos, abastado sou.) Ezequiel Pereira. Carlos de Haes. Vista
Alegre (muito alegre). Marfins. Essência indo-portuguesa da memória viva. Simão
da Veiga, Mesdag & Silva Porto. Não podemos parar. Mas arretar &
arrestar-nos devemos. Mais do que vida, breve é a crónica. Mais do que a
crónica, o sonho é breve.
Um pouco mais ’inda, todavia:
relíquias flamengas que não são queijo; barros policromados de Luísa Roldán
(talvez); Nicolau Boileau (que baptiza de seu nome a Sala) figurado a escultura
em biscoito-de-Sèvres. Há Delacroix (Eugène). Há um Desconhecido atirado a Vénus e os Amores; outro Idem em Cena Bíblica. E há, enfim, que despertar.
Desperto em Alpiarça. Estou só. Sou
José Relvas, é minha a Casa dos Patudos. Acontece Outubro. Vou a Lisboa
proclamar a República.
Para isto.
Sem comentários:
Enviar um comentário