Escrevo
hoje sob um céu muito puro, desses céus totais, absolutos e ubíquos cujo azul
chega a doer em seda. Raro, um fiapo de nuvem a oeste: fumo branco, dedada de
neve não mortífera. Não chega aqui, deo
gratias, o fragor estúpido dos carnavais, as idiotas tranquibérnias de
machos travestidos sem graça nem mistério de mulheronas hirsutas (quantos não
tirarão hoje do armário o esqueleto da sua pederastia reprimida?).
Há sossego,
a brisa penteia & despenteia a seu bel-talante o que por aí vai de
orquídeas, gardénias, chitas de senhoras. Ronrono ao sol da praça a digestão de
enchidos endógenos com que me apancei a tulha. Longe, um amigo (que agora pertence ao MEO) faz anos. Outro
amigo (que agora pertence à NOS)
fez uma biopsia. Andamos nisto.
De
cediça ossatura, um velho osteoporótico atravessa pela ponte de ferro o canal
fluvial. Vai a pensar em cenas de há décadas, como aliás também a mim me
acontece tanto, protagonista de pretéritos só já. Sobre ele, o sol português
dardeja suas radiantes frechas termonucleares. Por aqui, o anho sacrificial
grego não tem de morder o pastor alemão. Não é uma paz feita de genuflexão ante
o bezerro-de-ouro. A teratologia da coisa é outra.
Todavia,
a entristonhar esta fotogravura verbal surge um homem-anúncio: de farpela
plástico-amarela pejada de gritantes maiúsculas pretas, roga-nos ele que
saibamos como vender-lhe o nosso ouro e as nossas eventuais pratas avoengas. É
rapaz já descriado, fará publicamente aquela figura para comer, não sei, por
carnaval não será, suponho mas não sei. Ei-lo além já, amarelejando a
passadeira à pré-rotunda da velha fábrica de farinhas. A visão troca-mo de
imediato por uma fêmea de madeixas roxas que lhe ficam mal – como se alguém lhe
tivesse vomitado na cabeça. É de joelhos agudos como álgicas pontadas de
papagaio úrico. O olhar brilha-lhe qual moeda nova, porém: esteve com amigas
velhas a beber chá de catorze graus, daquele que leva mais branco. É senhora de
opiniões tipo TV-cassette, useira & vezeira de fatalismos zodíacos
fundamentados, tão-só e afinal, na falta de homem. Conheço-as destes
anticarnavais: explora um negócio de unhas pintadas num desvão de
escada-urinol-dos-aflitos ali perto da Sé.
Entretanto,
a Grécia recusa-se a ser, para já, como as barreiras do planalto santareno. Em
fúria, o furão teutónico brande índex-ultimatos de má-fé ariana & pior
consciência histórica. Os acólitos portugas rezam, de joelhos naturalmente, à
cruz (gamada). Mas por aqui não. É que estou sorrindo à epifania, galeri’afora,
do casal de carrinhos-gémeos a quem a lotaria da genética brindou com dois
clonezitos de chupetas geminadas. Homem-senhora-menino-e-menina: bonito de se
ver, a este sol. Que a saúde nunca se furte ou escasseie a este baralho de
quatro naipes, de trunfo todos eles.
Pela
avenida passa ora um carro de aparelhagem sonora stum-stum-stum-stum. Condu-lo um pardal imbecil de perfil mumífico
à Ramsés II. Vontade minha de autuá-lo com Bach até 2042. Também ele passa e se
dissipa, porém. A calma retorna à gravura, pacificadora e materna como flanela
mental.
A
minha verdade íntima, no entanto, é que quase não tenho pensado noutra coisa senão
na biopsia que o meu amigo fez, ou lhe fizeram, por estes dias. Ao pé da
faringe dele, nem alemanhas nem grécias contam seja o que for.
É
que esse amigo é, por assim dizer, meo.
Ele
e eu somos nos.
Ou
assim: meo gratias.
Sem comentários:
Enviar um comentário