Crónica Rosário
Breve - Terá parentes idosos sem saúde o
senhor ministro da Saúde? Por Daniel Abrunheiro
Até aos
nossos tristes dias, os idosos pobrezinhos de Portugal não tinham onde cair
mortos. Agora já têm: é nas urgências hospitalares, esses brancos matadouros da
contemporaneidade. Esperam e recebem a morte ao abandono das macas dos
bombeiros, vá lá que agasadalhadinhos e venha cá que com direito a chá mijão e
a bolachas de cianeto.
Cá fora, os
órfãos desses velhos despojados de toda a esperança e de toda a dignidade
sempre têm direito, pouco depois de cada passamento, a quinze segundos de fama
nos telenoticiários, à maneira dos “talentos” instantâneos que a hílare Teresa
Guilherme garimpa a preceito rasca aos monturos.
Logo de
seguida, a prestidigitação dos cultores da Estatística (essa arte da mentira
matemática) enleva-os (aos mortos e aos órfãos) de cerúlea (que é o azul do
Céu) misericórdia, lustra-os logo do áureo esmalte da fatalidade, banha-os de
pio sebo cristão, unta-os da mais chilra água-benta à beira da fervura das
lágrimas crocodílicas, logo os ungindo, enfim, de um seráfico esplendor que
lhes fica, precisamente, a matar.
Eu já não
consigo ter muita pena dos pobrezinhos de Portugal que, à asneira de aqui terem
nascido, somaram o disparate de se terem deixado envelhecer cá. E não consigo
ter muita pena deles porquê?
Porque a) sou ímpio; e b) foram eles a votar c) nestes
que lá estão; d) naqueles que lá
estiveram e e) nos homólogos de c) e d)
que lá hão-de estar.
Nos
entrementes, dez metros a estibordo da minha caligrafia, uma bonitíssima
velhota marca presença e dá sinal de vida. Está no passeio frontal da
pastelaria à espera do marido, que foi ali num instantinho à Caixa transferir
uns patacos-SOS aos filhos divorciados e sem emprego nem uso que tem
ó-tio-ó-tio em Lisboa. A senhora apresenta-se enroupada de abafos nacarados como
o dentro das conchas. Sopra os dedos enregelados das mãos. Sei que lhe apetece
o chá-das-cinco. Voto na esperança de que o marido (que roça já, como ela
também, as oito décadas de nascido) se não sinta mal de repente enquanto espera
vez para o caixa. Porque esta terra tem urgências hospitalares: esses brancos matadouros etc.
Nota: o
senhor ministro da Saúde está, à hora a que V. escrevo, de visita ao morredouro
hospitalar local. “Reunião de trabalho
com a administração”, parece. Ao que sei, o senhor ministro da Saúde é um
patusco bem assalariado. Tem motorista, isso também sei. E alcavalas de
mordomias inerentes ao cargo, claro. Não sei é se tem parentes idosos. Ou se,
tendo-os, estarão ou não eles bem de saúde. Oxalá que sim. Devem estar. O mais
certo é que, em caso de indisposição súbita, não tenham de penar odisseias de infindável
espera multi-horária nos calabouços esfregados a lixívia, a creolina e a ácido
fénico das unidades médicas. Um parente-ministro sempre é um ministro-parente,
caraças.
Escrevo
isto sem me rir. Nem me importa que o senhor ministro da Saúde venha ou não
venha a ler este desarrazoado chorincas meu. Eu escrevo para toda a gente, mas
não é com toda a gente que falo. Com o senhor ministro da Saúde, muito menos.
Também tenho os meus pudores. Também sou vulnerável à ira e à indignação.
Também me canso. Também me couraço. Também me blindo. Para mais, os meus Pais
já morreram. Estão safos do corrente genocídio português.
O problema
é que caminho para velho. Uso o meio-capote que o meu Pai me legou, como
naquela história que V. sabeis. A vida sabe-me na boca a noite fria mais vezes
do que o recomendam a posologia medicamentosa e a sensatez existencial. E sim,
confesso ter receio de que o senhor ministro da Saúde me queira mecanografado
nas estatísticas dele. Que é como quem diz: no seu obituário economicista
anti-pessoas e anti-direito à vida.
E que,
portanto, eu ainda acabe por demitir-me de tudo primeiro do que ele do dourado
lugar que ocupa, ele o senhor ministro da Saúde, a quem tal mortandade
geriátrica deve incomodar tanto quanto a mim a boazona da Irina ainda namorar
ou já não com o tão jovem e tão saudável e tão bonzão Melhor-do-Mundo.
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