Bruma e geada cingem a
respiração em andamento. Uma pessoa vem por beira-rio, está frio, é tempo dele,
as botas escrevem no chão o dois-por-quatro do caminho, sabe bem devolver em
vapor ao ar o que dele veio em gelo. Com alguma sorte, é-se tão natural como
cada signo do dia novo: os próprios braços como os das árvores, a água na boca
como a do rio persistindo ambas em chegar um dia ao mar, a fervura do cartoon do pensamento como o desenho-animado
do vento nas coisas volúveis, volantes coisas, venais é que não. A hora não é
de relógio, a manhã não é de calendário: outra coisa serão, outro sentido terão,
ser nelas é quanto basta. Para já.
Chega a pessoa ao balcão
da Ermelinda, já ela lida trapos e vidros, da máquina-cafeteira silva o
nevoeiro cálido, pelo chão a serradura fresca espera a cuspidela dos de mais
brutos modos, desligada da ficha a arca dos gelados espera o Estio e a
criançada colorida dele, sabe bem apear o bornal, sabe bem hastear os bons-dias
aos congéneres de Língua e Pátria que vêm ao mesmo, a Ermelinda servindo a cada
um o necessário sem perguntar o quê a quem, longos anos num gesto resumidos que
é serviço e (re)conhecimento do Outro.
Lá fora, a música do
mundo afina seus naipes: as ovelhas-chocalhos, os pardais-apogiaturas, o
sacristão-badalão, a prata barroca do fontanário perpétuo, a trompa de ter
nascido e mesmo assim o sol vir assim mesmo. Ninguém faz por pôr o seu deus, se
algum, à frente dos outros na bicha do Paraíso, se algum, muito menos alguém se
lembra de matar o próximo em nome do longínquo, a Ermelinda é que sempre diz
que o negócio de cada um não é a venda de todos.
Casados no palato o figo
e a aguardente, agora sim, agora é hora-número, o dia é já qualquer-coisa-feira,
o trabalho não azeda, vai o mestre da escola para a escola, o da oficina para a
oficina, o da muita terra para a leira, o do pouca-terra para a estação, o das
cartas para o correio. Ranchos de mulheres algaraviam o perpétuo interesse da
vida a caminho da fiação. Guincha o postigo meio-corpo do sapateiro. Trissa
altíssimo o manicómio feliz da passarada no plátano grande do rossio. Fico a
sós com a Ermelinda, que confia na honestidade da minha solidão para ir ali num
instante ao peixe e aos jornais, olho a repetição de cada mesa à espera da
novidade do fantasma, vou abrindo o bornal, tirando dele o lápis, a caderneta
para que copio as coisas importantes, dessa “suprema
importância que passa no dia seguinte” anotada por um tal Pessoa, pessoa que
também gostava de aguardente, de figos não sei, de figos gostaria Caeiro, se
algum.
Boa coisa: à volta da
Ermelinda, quase sem quê e de todo sem para-quê, tenho a crónica feita. Ajunto
caderneta e lápis de retorno às entranhas de pano do saquitel, engulo uma para
o caminho (bebe muito a pretexto de si mesmo, o sacana do caminho) e é já
quando devasso no pórtico as fitas verticais contra o mosquedo que, ao meu Até-logo-Ermelinda, dela ouço esta
bonita coisa:
– Até sempre, Charlie.
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