Não digo
que seja total a ruptura de stock.
Tanto, não digo – mas que seja indesmentível a vigente escassez de anjos, lá
isso é e digo.
Há
meses-anos na minha vida que não topo um. Perambulo muito à cata deles. Por vãos
& por reentrâncias de prédios devolutos & de teatros sem actores, toco
com a ponta da bota os hirtos corpos encartonados: volumes pessoais reduzidos a
uma marca de frigorífico japonês. Gente, enfim: hirtos seres autodeserdados,
tropa a que a vida, assobiando para o lado, estropiou sem solfejo nem grande
remorso.
Antigamente,
eu sitiava-os, aos meus anjos, sem acuidade nem esforço. Eles aconteciam-me.
Talvez fosse da idade. Da idade deles, digo. Ou, digo, da minha, que nem idade
quase tinha. Recordo aqui, e aqui o assento, aquele anjo do Novembro de 1981.
Foi à saída do Teatro do Príncipe Real. Era um espécimen apardalado de figura.
Magro, quase alto – e entre o cinza e o
castanho: assimétrica envergadura – e molhado de pés como um veneziano sem
barca. Cumprimentei-o sem recorrer a sílabas. Paguei-lhe um ponche quente no
bufete do Teatro frio. Separámo-nos, depois, no vão das escadas da Previdência,
ali-onde-ainda-agora aquele homem registava sociedades de totobola manuscritas
a bic-cristal-cor-de-pombo e aquecia
a frio o café-com-leite da solidão vitalícia em púcaro de folha sobre língua
azul de gás-estearina. Esse anjo ainda me deu para alguns meses de consumo sem
remédio: como o tudo o que se consome sem poder remediar-se.
Tive outros
anjos entretanto-tão-pouco, valha a verdade. Por exemplo, aquele de coisa
alguns anos depois de coisa afinal nenhuma, esse de um ano algures &
alhures entre os nascimentos da minha Primeira e da minha Segunda filhas. Esse,
sim: foi por um Outubro.
Apareceu-me
ele no espelho do barbeiro – e era do meu mesmo cabelo que ele se perdia à
lancetada bífida. Trazia ele consigo meio papo-seco de mortadela quase
transparente, dessa que dão aos pobres às portas de Santa Apolónia, a
Ferroviária, em desobrigas de
catolicismo esmoler por calendário à hora-TV. E sim, o olhar dele tinia. Tinia
coruscâncias à maneira das tesouradas recebidas em espelho: olhos que davam
para escutar.
Eu cá por
mim, ter tempo – tenho. Espaço para V. contar de muito(s) mais anjos é que não.
Leitor meu: isto é só, e tão-só, uma página de jornal: só não é a minha vida. (A
páginas tantas, é melhor do que a minha vida. Seja. Não discuto isso. Estou
aqui mais por causa dos anjos que já não há. Ou que não hei. Ele há-de haver
ainda alguns, que não sei eu?)
Alguma
coisa sei. Vi a cabeleireira sair foríssima de horas sem ser por véspera de
casamento. Ainda agora foi: uma reles terça-feira, reles antevéspera do
Nascimento do Deus-Menino-da-Coca-Cola-Paz-na-Terra-Prometida-aos-Judeus-de-Boa-Vontade.
Nove da noite. Dez euros por umas madeixas que até ficam mal à freguesa. Dizem
até que o gajo dela (da freguesa) lhe bate. Mas o anjo de hoje: esse?
Parece-me
tê-lo vislumbrado na fila do desemprego. Não o confundi. Os outros todos eram
só gente. Desandei. Ele há menos gente do que anjos, se calhar.
Isto não
anda fácil entre Novembro e Outubro.
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