Para epígrafe de um caderno que
há-de ser livro e que ando compondo desde o dia 13 do mês passado, elegi este
trecho de Georges Duby (in As Damas do
Século XII – 1, Editorial Teorema, Lx., 1996):
“Aviso
desde já: o que pretendo mostrar não é o vivido real. Inacessível. São
reflexos, o que os testemunhos escritos reflectem. Confio no que dizem.”
Mais a esta liça ajunto que: toda a
vida fiz da atenção uma espécie de estúdio de fotógrafo verbal, desses de boneco-cavalinho
pelas pagãs feiras santuárias da populaça, resultando na prática, a minha vida
mesma, em um ror de mentiras – se não honestas e/ou piedosas, ao menos bem
intencionadas, como é próprio dos infernos privados.
Ao atulhado logradouro de
lembranças vou buscar ficções verídicas e inverosímeis no intuito da
mistificação alegórica e pró-moral. Exemplo maior: morta a Mãe, finado é tudo o
que for princípio.
Ao estaleiro da memória recorro a
toda a hora, mormente quando anoitece logo pela manhã. Exemplo não menor: o meu
Pai manquejando, como se o liso chão estivesse emboscado de invisíveis móveis
irrequietos tropeçadiços degraus. Assim escrevo. Assim escrevivo.
A viúva que acaba de passar? –
Manilha-de-paus com atavios de dama-de-copas, dessas que não raro desovam filharada
póstuma bem para além das 36 semanas de regimental respeito ao falecido.
O ajudante de armazém importador de
bananas com tanto quisto sebáceo na região demarcada do sovaco? – Estandarte
vivo da Escrófula com que Deus Vosso Senhor intumesce os culpados relapsos de
onanismo, esses punhetas ateus.
Aviso: não é que estas pessoas
tenham, deveras, acabado de passar pela antecâmara do meu lápis fot’oftálmico –
mas existem. À minha maneira, existem – como aliás também os anjos: só quem,
pelo entardenoitecer do Outono, não foi dar aos patos fluviais uma última demão
de pão velho os não sentiu. (Os não sentiu no olhar, que não pelos olhos,
digo.)
De que trata, pois, o caderno-livro
de que V. falo? De impreteríveis sedas & sedes, de espúrias espumas, do
arco-da-velha-das-coisas, de cenas de uma violência extrema como por exemplo a
epifania que toda a criança, mesmo alheia, é, de lances de censurável exposição
sexual como ainda agora aquela nuvem missionariamente por cima daqueloutra (mas
nenhuma nuvem, não importa, está-dito-está-feito-está-lido-está-vivido). Trata
do antagonismo entre a luta e o luto. Fotografa estas povoações sem remédio mas
com farmácia por que disperso a minha vida compendiável para além daquelas duas
datas que sabemos.
No fundo como à flor, vivo de &
para ninharias. Seja. Na dimensão daquilo a que à falta de melhor palavra
chamamos Realidade, o que importa
mesmo são os dois dedos manuais que um trabalhador perdeu de si em acidente
laboral ocorrido no passado dia primeiro do corrente em uma empresa metalúrgica
sediada em Celeirós, Braga. Isso sim. Isso é que é literatura. Eu sei. Nem
sinto confusão, nem faço confusões – a mão doravante mutilada desse trabalhador
conta mais do que quanta página eu seja capaz. Pois, nenhuma confusão. Exemplo:
não confundo o Duarte Lama com o Dalai Lima. São carecas não mutuamente
reagentes.
Fiquemos hoje por aqui. Está em
curso a semana. São 7 e 19 da matina, tenho de apanhar o expresso das 8 e 20
para a minha terra, vou lá tratar de papeladas inadiáveis relativas a não sei
quê (mas a quem, sei). Está frio. Levo o casaco mais pesado. Vou de botas.
Confio no frio. É uma espécie de
pele de vidro. Tenho os dedos todos.
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