terça-feira, 15 de julho de 2014

Rosário Breve Do Zé, agora Beatriz só por Daniel Abrunheiro

Nunca vivi abaixo das minhas impossibilidades.
Um homem é um homem, não se quer outro.
Relanceando sem dor nem euforia o baralho de pretéritos com que destrunfo a bisca do presente, o mais é serenidade.
Alinho com Ángel Crespo quando ele diz que “entre a mentira e a verdade se encontra o certo”.
Não minto, por exemplo, quando, às seis e meia da manhã, no Café da minha rua que abre mais cedo, dou e digo os bons-dias a quem madruga como eu. Escrevendo, cuido não errar, sempre que prefiro a claridade à clareza: todos nos pautamos por cifrado pentagrama próprio, codificada a experiência, apurado o gasto, expurgada a bílis da desesperança.
Canhoto de mim mesmo, ao espelho só. Ainda ontem, egresso do muito que chovia em virtude do ambular por galeria coberta, colhi mil-e-uma coisas que ao olhar volvem dextro e contente: o cavalheiro de chapéu alto & lentes fumadas a azul-de-teatro que rescendia a século XIX; a mulher (também alta e também azul) cujo balcão peitoral me semelhou um tabuleiro de nata pontificada por dois sumos morangos pontudos; duas grávidas trocando risadas à beira de uma carrinha funerária vazia; uma velhota portando uma rede de laranjas, estas e aquela consumando dois ciclos da terra; e uma revoada de pombas em esquadrilha bem mais ordenada do que estas linhas.
E tudo isto, entre verdade e mentira, para vos esconder que fui ao funeral do Zé Martins na segunda-feira mais recente das nossas vidas. Não queria , todavia posso contar-vo-lo.
Era por uma jornada de Verão pelo calendário – mas de Inverno nós adentro. Chovia que se não fartava. De manhã, os céus haviam desabado num fragor de fúria eléctrica, insana, poderosa, inútil. A tristura de canário do cenário reiterava a impensável morte do nosso Zé Martins, o de olhos claros herdados da filha Beatriz, o Zé a quem queríamos como a um irmão se quer. Entre nós-amigos-dele, ante o descalabro da má-nova, dera-se a fritura de telefonemas alquebrados, partidos pela medula, em uma partilha de vãs indignações contra o despropósito do Destino que no-lo roubara – ou do Diabo, ou da falta de Deus, por ele.
À saída do campo-santo de Chelo, e porque aquele último dormir dele é em serra não baixa, o Luís, o Zé Alberto, a Ana Cristina e eu fomos confrontados pela massa de vapor que obnubilava a aguda geometria de ângulos do panorama: uma nuvem rasa que tão depressa apagou a gravura como, de si mesma extinta, tudo de novo deixou clarear. Vimos aquilo, viemos nisto. Deixámo-lo lá, ao bom Zé, a sós consigo e por desconta própria.
Agora que isto escrevivo, é, para mais, de tarde – e agora é tarde de mais.
É verdade que sempre temos a Beatriz.

E não é mentira que por coisas assim prefiro a claridade à clareza, dentre as minhas impossibilidades.

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