Nunca vivi
abaixo das minhas impossibilidades.
Um
homem é um homem, não se quer outro.
Relanceando
sem dor nem euforia o baralho de pretéritos com que destrunfo a bisca do
presente, o mais é serenidade.
Alinho
com Ángel Crespo quando ele diz que “entre
a mentira e a verdade se encontra o certo”.
Não
minto, por exemplo, quando, às seis e meia da manhã, no Café da minha rua que
abre mais cedo, dou e digo os bons-dias
a quem madruga como eu. Escrevendo, cuido não errar, sempre que prefiro a
claridade à clareza: todos nos pautamos por cifrado pentagrama próprio,
codificada a experiência, apurado o gasto, expurgada a bílis da desesperança.
Canhoto
de mim mesmo, ao espelho só. Ainda ontem, egresso do muito que chovia em
virtude do ambular por galeria coberta, colhi mil-e-uma coisas que ao olhar
volvem dextro e contente: o cavalheiro de chapéu alto & lentes fumadas a
azul-de-teatro que rescendia a século XIX; a mulher (também alta e também azul)
cujo balcão peitoral me semelhou um tabuleiro de nata pontificada por dois
sumos morangos pontudos; duas grávidas trocando risadas à beira de uma carrinha
funerária vazia; uma velhota portando uma rede de laranjas, estas e aquela
consumando dois ciclos da terra; e uma revoada de pombas em esquadrilha bem
mais ordenada do que estas linhas.
E tudo
isto, entre verdade e mentira, para vos esconder que fui ao funeral do Zé
Martins na segunda-feira mais recente das nossas vidas. Não queria , todavia posso
contar-vo-lo.
Era por
uma jornada de Verão pelo calendário – mas de Inverno nós adentro. Chovia que se
não fartava. De manhã, os céus haviam desabado num fragor de fúria eléctrica,
insana, poderosa, inútil. A tristura de canário do cenário reiterava a
impensável morte do nosso Zé Martins, o de olhos claros herdados da filha
Beatriz, o Zé a quem queríamos como a um irmão se quer. Entre nós-amigos-dele,
ante o descalabro da má-nova, dera-se a fritura de telefonemas alquebrados,
partidos pela medula, em uma partilha de vãs indignações contra o despropósito
do Destino que no-lo roubara – ou do Diabo, ou da falta de Deus, por ele.
À saída
do campo-santo de Chelo, e porque aquele último dormir dele é em serra não
baixa, o Luís, o Zé Alberto, a Ana Cristina e eu fomos confrontados pela massa
de vapor que obnubilava a aguda geometria de ângulos do panorama: uma nuvem
rasa que tão depressa apagou a gravura como, de si mesma extinta, tudo de novo
deixou clarear. Vimos aquilo, viemos nisto. Deixámo-lo lá, ao bom Zé, a sós
consigo e por desconta própria.
Agora
que isto escrevivo, é, para mais, de tarde – e agora é tarde de mais.
É verdade
que sempre temos a Beatriz.
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