O
Verão tem acontecido temperadamente. Trouxe de volta as cores, espargiu pelos
relvados as poucas crianças que ainda por este País de tesos sem tusa são
feitas. A chávena de leite fresco sabe bem na estreia de cada dia nato em nata.
A meio da manhã, a malga de branco amorangado também. No estaleiro da obra,
duas aparas de madeira esbraseiam a sardinha operária.
Dona
Graciana veio bem-disposta da consulta: ainda não é desta que nos fecham o
posto de saúde. Juvenal chega do rio com uma rede generosa de peixes quási
vivos. Expele delicada fragrância erótica a turista de sandálias verdes e
promessa de blusa vinculativa, de que mana (ou mama) a fofura do par de
alperces lácteos. Parece rola dada aos ardis turvos da lingerie. É ela quem lhe dá na malga frígida de branco, indiferente
aos miasmas oftálmicos que lhe açulam ao decote. De bicicleta furiosamente
encarnada, vem pedalando vapores de toiro o Ruizito da Aurora – dizem que é
muito esperto na matemática, mas oxalá que não estude para professor por causa
do emprego, quanto mais da carreira. O Telmo da Florbela está precisamente
agora a teimar com o Horácio Padeiro a propósito da exactidão onomástica da
pintora francesa exposta em colecção na Casa-Museu Passos Canavarro: o Telmo assevera
que é Mimi Fogt; o Horácio, que não, que pode lá ser, que Fogt é lá nome
francês. O Raul da Farmácia tem uma amante casada em Alpiarça e quer que se
saiba, mas baixinho. Às quatro da tarde, a cal da igreja está em brasa ao
torresmo solar. O pachorrento Mariano da Estrelícia brande o jornal ao Benedito
Borbulhas, chamando mentirosos aos jornalistas por causa daquilo das 100
maiores empresas do distrito de Santarém. Quando o Benedito quer saber porquê, redargue-lhe
o Mariano que ao todo nem 40 empresas há-de por aí haver em laboração, quanto
mais cem. Eu sorrio mui doutamente, rodando na pata esquerda o terceiro vermute
abridor da ceia. O Joca Franciú, que esteve uns anitos poucos no Luxemburgo
para vir de lá sifilítico de ainda mais pobre do que o aquando de para lá ir,
tira à carrada industrial cera do orelhame com a unhaca do mínimo, fazendo
estralejar a pulseira de lata gross’amarela. Carregada de flores como a Mrs
Dalloway, passa a caminho do cemitério a patética Ricardina. – Estás-lh’a
chamar pateta porquê?, quer saber o Joca. E eu digo-lhe que patética não quer
dizer pateta, quer dizer comovente. E mais lhe digo que até parece que tu foste
ao São Carlos desgostar a sinfonia do Cruges com aquelas mamarrachas da plateia.
E ele remata que aqui não mora nenhuma Senhora Dá-lo-ei, que eu tenho mas é a
mania. E tenho.
Nisto,
a noite emaranha já gambiarras de silveira estelar. Da boca do rio, uma aragem
branda traz o frescote. O rio mesmo parece prantear os filhos que lhe sequestrou
o Juvenal. O Assunção vai de zundappe buscar a mulher à saída do hipermercado.
O Mariano ainda está a zurzir naquilo das não-sei-quantas maiores empresas do
distrito, pelo que, fartinho dele, o Borbulhas lhe diz tipo isto: – Ó pá, se tu
subisses a um altar no 15 de Agosto ainda t’apar’cia o prezdente-da-cambra na
procissão. E o Mariano: – Olha, Fogt.
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