sábado, 26 de julho de 2014
Crónica Rosário Breve Olha, Mimi por Daniel Abrunheiro
O
Verão tem acontecido temperadamente. Trouxe de volta as cores, espargiu pelos
relvados as poucas crianças que ainda por este País de tesos sem tusa são
feitas. A chávena de leite fresco sabe bem na estreia de cada dia nato em nata.
A meio da manhã, a malga de branco amorangado também. No estaleiro da obra,
duas aparas de madeira esbraseiam a sardinha operária.
Dona
Graciana veio bem-disposta da consulta: ainda não é desta que nos fecham o
posto de saúde. Juvenal chega do rio com uma rede generosa de peixes quási
vivos. Expele delicada fragrância erótica a turista de sandálias verdes e
promessa de blusa vinculativa, de que mana (ou mama) a fofura do par de
alperces lácteos. Parece rola dada aos ardis turvos da lingerie. É ela quem lhe dá na malga frígida de branco, indiferente
aos miasmas oftálmicos que lhe açulam ao decote. De bicicleta furiosamente
encarnada, vem pedalando vapores de toiro o Ruizito da Aurora – dizem que é
muito esperto na matemática, mas oxalá que não estude para professor por causa
do emprego, quanto mais da carreira. O Telmo da Florbela está precisamente
agora a teimar com o Horácio Padeiro a propósito da exactidão onomástica da
pintora francesa exposta em colecção na Casa-Museu Passos Canavarro: o Telmo assevera
que é Mimi Fogt; o Horácio, que não, que pode lá ser, que Fogt é lá nome
francês. O Raul da Farmácia tem uma amante casada em Alpiarça e quer que se
saiba, mas baixinho. Às quatro da tarde, a cal da igreja está em brasa ao
torresmo solar. O pachorrento Mariano da Estrelícia brande o jornal ao Benedito
Borbulhas, chamando mentirosos aos jornalistas por causa daquilo das 100
maiores empresas do distrito de Santarém. Quando o Benedito quer saber porquê, redargue-lhe
o Mariano que ao todo nem 40 empresas há-de por aí haver em laboração, quanto
mais cem. Eu sorrio mui doutamente, rodando na pata esquerda o terceiro vermute
abridor da ceia. O Joca Franciú, que esteve uns anitos poucos no Luxemburgo
para vir de lá sifilítico de ainda mais pobre do que o aquando de para lá ir,
tira à carrada industrial cera do orelhame com a unhaca do mínimo, fazendo
estralejar a pulseira de lata gross’amarela. Carregada de flores como a Mrs
Dalloway, passa a caminho do cemitério a patética Ricardina. – Estás-lh’a
chamar pateta porquê?, quer saber o Joca. E eu digo-lhe que patética não quer
dizer pateta, quer dizer comovente. E mais lhe digo que até parece que tu foste
ao São Carlos desgostar a sinfonia do Cruges com aquelas mamarrachas da plateia.
E ele remata que aqui não mora nenhuma Senhora Dá-lo-ei, que eu tenho mas é a
mania. E tenho.
Nisto,
a noite emaranha já gambiarras de silveira estelar. Da boca do rio, uma aragem
branda traz o frescote. O rio mesmo parece prantear os filhos que lhe sequestrou
o Juvenal. O Assunção vai de zundappe buscar a mulher à saída do hipermercado.
O Mariano ainda está a zurzir naquilo das não-sei-quantas maiores empresas do
distrito, pelo que, fartinho dele, o Borbulhas lhe diz tipo isto: – Ó pá, se tu
subisses a um altar no 15 de Agosto ainda t’apar’cia o prezdente-da-cambra na
procissão. E o Mariano: – Olha, Fogt.
segunda-feira, 21 de julho de 2014
MORREU ESTROMPA (1942 – 2014) - Cartoonista, humorista, Bandadesenhista
João Estrompa faleceu na 6ª feira, dia 18
Aqui ficam a Biografia do autor, do Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, de Leonardo De Sá e António Dias de Deus e uma peça de Geraldes Lino publicada no Tertúlia BDzine #64, de 4 de Março de 2003. Deixo também o Tertúlia BDzine #63 com a história Batman, de Estrompa, editada nesse mesmo Encontro. Estrompa viria a ser Homenageado no 264º Encontro da Tertúlia BD de Lisboa em 7 de Novembro de 2006.
José João Amaral Estrompa nasceu a 8 de Fevereiro de 1942, em Lisboa. Cursou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e começou a sua carreira como desenhador litógrafo. Foi um dos colaboradores gráficos das versões portuguesas de Tintin e Spirou, assim como dos álbuns da Colecção Banda Desenhada, da Bertrand. No Diário de Notícias Semanalteve a secção "Humor de Estrompa" (1982-83), colaborando em Pão Com Manteiga, Tintin,O Mosquito (5ª série), Jornal de Almada, Selecções BD, Notícias do Entroncamento. Publicou várias histórias e ilustrações em fanzines como Protótipo, Almada B.D. Fanzine,Banda, Comic Cala-te, Boom!!!, Classe Média, BD & Roll, Seasons of Glass, Vertigens,Cafénopark, e Shock Fanzine, sendo editor destes dois últimos. Um dos seus personagens carismáticos é o detective de paródia, "Tornado", numa Nova Iorque que mais parece o Bairro Alto ou o Cais do Sodré que o Bronx... Essa figura de gabardina voltou às investigações sumárias na 2ª série de Selecções BD, em 1999. Participou no álbum colectivo Entroncamento de BD's, em 1996, e em diversas exposições, tendo recebido prémios nas categorias BD e cartoon.
In Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, de Leonardo De Sá e António Dias de Deus, NonArte – Cadernos do Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem, Edições Época de Ouro, Costa de Caparica 1999.
Acrescentemos também que Estrompa participou na Mutate & Survive (Colecção Chili Com Carne #2; 2001), na Lx Comics nº 13 (Tornado – Só me Saem Dukes!), em Outubro de 2002 e Vasco Granja: Uma Vida... Mil Imagens, em 2003. Colaborou ainda no BDjornal #5, de Setembro de 2005, com as sete pranchas de Uma História Triste
BIOGRAFIA DE ESTROMPA por
Geraldes Lino
José João Amaral Estrompa nasceu em Lisboa, em mil novecentos e quarenta e dois (mas parece ter a idade do Tornado, desde que rapou a barba). Frequentou a Escola António Arroio, sem ter concluído o respectivo curso. A sua área profissional foi sempre a Publicidade e Artes Gráficas. Nas revistas Tintin, Pão com Manteiga, DN Semanal, Mosquito(5ª série) e Selecções BD (1ª série) publicou cartoons e bedês cómicas, de uma página, com animais de características antropomórficas – Pink (um gato) e Smaile (um cão que tem um gato amigo chamado Smool). Mas a sua maior produção é mesmo nos fanzines, com destaque óbvio para os numerosos episódios da sua série de referência, o Tornado 1989 – este já com duas merecidas promoções: ao fazer dez anos de existência (1999) teve publicação na revista Selecções BD (2ª série), surgindo posteriormente em álbum editado pela Bedeteca de Lisboa. Foi de igual modo nos fanzines que, embora de forma esporádica, Estrompa fez viver a comportamentalmente subversiva Família Darling.
Sempre com a fusca calibre 69 pronta a entrar em acção, uma beata permanente ao canto da boca, chapéu, gravata amarela sobre camisa de seda azul (apesar de a série sempre ter sido publicada a preto e branco, sabemos que são essas as suas cores, graças às descrições do narrador), mais as suas inseparáveis luvas de genuína pele de porco – tão inseparáveis que nem nas cenas de sexo as tira ! –, Tornado 1989 é um dos raros heróis fixos da banda desenhada portuguesa. Com a particularidade de ter nascido e vivido até há pouco unicamente nas páginas dos fanzines – Banda, Comic Cala-te, BD & Roll, Shock,Almada BD Fanzine, CaféNoPark, Seasons of Glass, Boom e Tertúlia BDzine, por onde já se espalham duas dezenas de episódios. O seu aparecimento em Julho de 1999, no nº 2 (2ª série) da revista Selecções BD correspondeu à oportunidade de saltar das publicações amadoras para uma profissional. Três anos depois, Tornado voltou a ter a oportunidade de mostrar-se em suporte de prestígio, a colecção LX Comics editada pela Bedêteca de Lisboa.
Estrompa, o autor (argumento e desenho) do Tornado 1989, considera-o como que “um cavaleiro andante do asfalto”. Ternuras cúmplices de criador... Do que não há dúvidas é que, seja no nome, seja no aspecto físico, ou até no vestuário, ele tem semelhanças comTorpedo 1936, personagem de referência na banda desenhada espanhola, criada pelo traço de Jordi Bernet sob o argumento de Enrique Sanchez Abulí. Quando Estrompa viu pela primeira vez o Torpedo, em 1985, nos álbuns da entretanto extinta Editorial Futura, apercebeu-se que ele lhe fazia voltar à memória as imagens de alguns actores que o tinham impressionado na infância, uns tais Humphrey Bogart, James Cagney, Edward G. Robinson... Daí a criação de Tornado 1989, anti-herói que o autor admite ter desenhado um tanto à maneira de pastiche do Torpedo, embora sejam de sua autoria, enquanto argumentista, as diferentes e muito especiais características de malandro profissional evidentes no Tornado – o qual tem sido um pouco de várias coisas: polícia, mas também ladrão, detective, dono de um bar em Casablanca... – versatilidade que lhe confere uma personalidade desconcertante e muito própria.
Tornado foi criado graficamente em 1989, pormenor em destaque no nome de guerra com que se apresenta. Ao longo da sua existência tem-se constatado que ele possui tendências, humorísticas e críticas, diferentes da do respectivo modelo. Os constantes apartes, brejeiros ou sardónicos, que intercalam os diálogos e pensamentos da personagem, bem como os comentários mordazes do narrador, criam à série, por sua vez, uma textura interventiva que rareia nas suas congéneres. Aliás, Estrompa, o seu manipulador literário e gráfico, envolve-o nas mais insólitas peripécias, desde obrigá-lo a fazer-se passar por travesti (a “menina” Tornada, no episódio Torpedo contra Tornado), a deixá-lo apanhar uma doença venérea (no episódio Uma História de Cowboys), até não o poupar a uma cena imprópria para um protótipo de machão latino: a de ser sodomizado por dois ou três “gorilas”, às ordens dum mafioso com voz cavernosa e cara de Marlon Brando (episódio O Padrinho). Estas e outras situações insólitas, conferem-lhe uma dimensão ficcional de grande originalidade no universo da banda desenhada portuguesa, tornando-o num anti-herói exemplar.
Para quem entrar pela primeira vez em contacto com Tornado, há que esclarecer que o seu nome real é Bogarte – para os amigos já foi Garte, passou depois a ser Bogey, mas, para as “girls”, foi sempre e apenas o Boga. Tornado é simples alcunha, criada por ele expressamente para a bófia, mas serve igualmente para os tansos e “nalfabétus”, conforme diz no seu português rasca em ocasionais confidências. Quanto à idade, tem a que aparenta : quarenta sombrias “prima-beras” – assim escreve o seu “biógrafo” Estrompa – completadas num qualquer mês do signo de Carneiro; no que se refere ao local de nascimento, os elementos fornecidos na sua apresentação (Banda nº 10, Agosto de 1990) não são minimamente credíveis, visto que mencionam em simultâneo, dois locais geograficamente bem distantes: Nova Iorque e Casal Ventoso! Será que, afinal, é português de origem, embora naturalizado americano? Com efeito, ele conhece bem Lisboa, tão bem que até gosta, como diz a certa altura, “de ir beber um uísque com gêlo a uma espelunca ali p’rós lados do Parkmayer” (citação textual). Mesmo a sua divulgada filiação – pai polaco, mãe italiana, emigrantes – poderá ter sido forjada, para despistar a bófia. Onde estará a verdade ? Alguma vez se virá a saber ?
Estrompa & Tornado formam uma dupla muito sabidona, sempre com trunfos escondidos na manga...
in "Tertúlia BDzine, Nº 64, 4 Marco 2003 – Distribuição gratuita na Tertúlia BD de Lisboa"
terça-feira, 15 de julho de 2014
Rosário Breve Do Zé, agora Beatriz só por Daniel Abrunheiro
Nunca vivi
abaixo das minhas impossibilidades.
Um
homem é um homem, não se quer outro.
Relanceando
sem dor nem euforia o baralho de pretéritos com que destrunfo a bisca do
presente, o mais é serenidade.
Alinho
com Ángel Crespo quando ele diz que “entre
a mentira e a verdade se encontra o certo”.
Não
minto, por exemplo, quando, às seis e meia da manhã, no Café da minha rua que
abre mais cedo, dou e digo os bons-dias
a quem madruga como eu. Escrevendo, cuido não errar, sempre que prefiro a
claridade à clareza: todos nos pautamos por cifrado pentagrama próprio,
codificada a experiência, apurado o gasto, expurgada a bílis da desesperança.
Canhoto
de mim mesmo, ao espelho só. Ainda ontem, egresso do muito que chovia em
virtude do ambular por galeria coberta, colhi mil-e-uma coisas que ao olhar
volvem dextro e contente: o cavalheiro de chapéu alto & lentes fumadas a
azul-de-teatro que rescendia a século XIX; a mulher (também alta e também azul)
cujo balcão peitoral me semelhou um tabuleiro de nata pontificada por dois
sumos morangos pontudos; duas grávidas trocando risadas à beira de uma carrinha
funerária vazia; uma velhota portando uma rede de laranjas, estas e aquela
consumando dois ciclos da terra; e uma revoada de pombas em esquadrilha bem
mais ordenada do que estas linhas.
E tudo
isto, entre verdade e mentira, para vos esconder que fui ao funeral do Zé
Martins na segunda-feira mais recente das nossas vidas. Não queria , todavia posso
contar-vo-lo.
Era por
uma jornada de Verão pelo calendário – mas de Inverno nós adentro. Chovia que se
não fartava. De manhã, os céus haviam desabado num fragor de fúria eléctrica,
insana, poderosa, inútil. A tristura de canário do cenário reiterava a
impensável morte do nosso Zé Martins, o de olhos claros herdados da filha
Beatriz, o Zé a quem queríamos como a um irmão se quer. Entre nós-amigos-dele,
ante o descalabro da má-nova, dera-se a fritura de telefonemas alquebrados,
partidos pela medula, em uma partilha de vãs indignações contra o despropósito
do Destino que no-lo roubara – ou do Diabo, ou da falta de Deus, por ele.
À saída
do campo-santo de Chelo, e porque aquele último dormir dele é em serra não
baixa, o Luís, o Zé Alberto, a Ana Cristina e eu fomos confrontados pela massa
de vapor que obnubilava a aguda geometria de ângulos do panorama: uma nuvem
rasa que tão depressa apagou a gravura como, de si mesma extinta, tudo de novo
deixou clarear. Vimos aquilo, viemos nisto. Deixámo-lo lá, ao bom Zé, a sós
consigo e por desconta própria.
Agora
que isto escrevivo, é, para mais, de tarde – e agora é tarde de mais.
É verdade
que sempre temos a Beatriz.
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