O pintor José Penicheiro morreu no dia
16 de Março de 2012, com 94 anos.
Porque o conheci, julgo natural que me
seja exigido um depoimento que vá um pouco para lá da ditirâmbica palermice
circunstancial, habitual noutros meios. Tal seria indesculpável, dada a minha
responsabilidade e a dimensão incontornável do artista.
Ficará para mais tarde. Por hoje,
fiz-lhe um retrato. Com um abraço amigo.
http://ositiodosdesenhos.blogspot.pt/
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todos os quadros têm
teias de aranha no cu
Marcel Duchamp
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Nos anos oitenta do século passado, o
chuveirinho de fundos perdidos proveniente da então CEE achou em Portugal solo
fértil para o milagre económico e sociológico do novo-riquismo, que ficou
popularmente conhecido por “cavaquismo”. Mas também acabou por proporcionar um
outro fenómeno sociológico, e económico, inaudito na história de Portugal: a
eclosão de um mercado de arte na província.
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É verdade. De repente, num país
atrasado e atavicamente pouco dado a coisas do espírito - acabadinho de sair de
uma ditadura de quatro décadas, de um pequeno sobressalto “revolucionário” e de
duas intervenções assistenciais do FMI - pessoas acabadas de ascender a uma próspera e inesperada classe
média-alta descobriram em si um ideal abstracto e, num inusitado interesse plo espírito das coisas, o amor acrisolado pela arte. Foi assim que médicos,
engenheiros, advogados, magistrados, altos funcionários e pequenos empresários
com poder aquisitivo e alma deconnoisseurs, de coleccioneurs ou de
investideurs criaram as condições para que um pequeno
núcleo de artistas, alguns já activos desde os anos 40 e 50, se pudesse dedicar
à arte a tempo inteiro. Foi o caso de José
Penicheiro.
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O poder autárquico, pla aquisição de
obras e encomendas de arte pública, também deu um valioso contributo para a
consagração destes petits maitres regionais; assim como o Serviço Nacional de Saúde que, com o seu generoso
patrocínio das multinacionais do medicamento, permitiu a impressão mecenática
de sucessivas e copiosas edições limitadas de serigrafias e litografias cujos
exemplares, assinados e numerados pelos artistas, reproduziam originais e eram
distribuídas, como oferendas, em alegres congressos médicos pla província - num
contributo precioso, e definitivo, para a divulgação das suas obras e para a sua
imensa popularidade.
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Na Figueira, por exemplo, não há casa
nem casebre que não possua as paredes engalanadas com uma destas (já
desbotadas, no caso das litografias) reproduções. O povo tinha mesmo os seus
artistas preferidos. Contudo, nunca houve unanimidade. A admiração popular, tal
como no futebol, ainda hoje se divide plos três grandes: Cunha Rocha, Mário
Silva e José Penicheiro.
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E contudo, dos “três grandes”,
Penicheiro era o artista menos óbvio para agradar ao novo gosto dos novos
burgueses emergentes - o seu trabalho era prejudicado pela má qualidade dos
suportes (cartão ou platex) e dos materiais (o guache e a tinta plástica) e o
seu imaginário, enraizado ainda em modelos neo-realistas, era povoado
de gente humilde e anónima numa paisagem ribeirinha sempre ligada ao
universo do trabalho árduo e penoso: no salgado, na pesca, na lota, em andaimes
e estaleiros - os novos-ricos, mesmo de origem humilde, não gostam que lho
recordem. Também desprezam o trabalho duro, que acham desqualificado, e desconfiam da arte que o representa: invariavelmente acham-na
subversiva ou, no mínimo, inconveniente.
Mas foi isso mesmo que Penicheiro fez:
encheu-lhes as paredes das vivendas e dos palacetes de trolhas e marnotos,
costureiras, pescadores, moliceiros, lavadeiras e cavadores.
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A grande arte de Zé Penicheiro
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Filho de um carpinteiro, Zé Penicheiro
começou pela caricatura em madeira. Bonecos em volume, como ele dizia.
Auto-didacta orgulhoso (quase até à arrogância) aprendeu o desenho e aprimorou
o traço na tarimba do humor gráfico e da caricatura de imprensa, nos anos de
chumbo da censura. Desenhador compulsivo, o seu traço vigoroso, sintético e
eloquente era alicerçado num sentido da composição rigoroso, numa
sensibilidade de colorista requintado – adquiridos ao longo de muitos anos
de trabalho na publicidade e na decoração – e num instinto ornamental que se
foi tornando cada vez mais sofisticado e exuberante.
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Quando o conheci, em 1981, trabalhei com
ele em publicidade. Aprendi imenso (a relevância do seu contributo para a
linguagem desta arte de comunicação dava para escrever um tratado, um capítulo à parte na sua vasta obra criativa (só semelhante ao de outro figueirense, Cândido
Costa Pinto. Este até com obra teórica publicada sobre o assunto, embora nunca
tenha exercido actividade na região). Mas em 84 (ou 85), quando trabalhei para ele - na impressão serigráfica dos seus
trabalhos – já ele se dedicava finalmente, em exclusivo, à sua paixão de toda a
vida, a pintura. Tinha mais de sessenta anos.
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Numa idade em que a maior parte dos
homens calça as pantufas e se senta ao borralho a olhar
para ontem, Penicheiro preparava-se para começar outra vida. Criativa. E para
consumar a sua obra – uma obra que teria, contudo, um carácter sempre
reminiscente, também a olhar para ontem, numa espécie de
interminável “Amarcord”.
Todavia, ao contrário de Fellini, não
existe em Penicheiro o conflito, o pormenor, o improviso, a blasfémia, o humor
(ou o sarcasmo), a revolta, a gargalhada, a obscenidade, a subversão, o
grito.
Não há rostos, nem olhares, nem
expressões na sua obra. Nem se vêem das mãos as linhas da vida, ou as unhas
negras e as calosidades. Apenas vultos. Os homens, de chapéu; as mulheres, de
lenço na cabeça, sempre curvada. Tudo sob um manto intrincado de manchas
opacas, numa densa bruma esquartejada de harmoniosas decomposições tonais
atenuadas. E uma indelével impressão de nostálgica e solene mansidão
resignada.
Penicheiro não pinta o que vê, pinta o
que viu. Ou melhor, a impressão com que ficou.
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Foi esta visão sentimental, silenciosa e
velada pela distância do tempo que talvez tenha tranquilizado os novos (e até
os velhos) burgueses. A-do-ra-ram. Penicheiro tornou-se mesmo o artista mais
premiado e homenageado pelos “clubes de serviço”. Arrematavam tudo,
em alegres e selectas jantaradas. À peça ou à molhada.
A consagração popular veio depois, naturalmente.
O povo, como é sabido, aplaude sempre os vencedores.
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Porém, a coroa de glória de Zé
Penicheiro, a verdadeira consagração, surgiu já quase no fim da sua vida (e
carreira, que os artistas trabalham sempre até ao fim), em 2004: a
encomenda de um mural monumental pela Universidade de Aveiro, para comemoração
dos seus trinta anos.
Nada mal. Para um homem que se tinha
feito a si próprio, que se gabava de nunca ter ido à escola e de toda-a-vida
ter nutrido um sincero desprezo pelo conhecimento académico.
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