Não,
não é nada disso em que estão a pensar…
O
que se passou há 27 anos – e será aqui explicado – não foi mais que um curioso episódio
de “ocupação pacífica” desse belo Museu, fundado em 1916, e que mantém no seu
interior uma extraordinária colecção de peças da multifacetada obra, tão
variada quão genial, desse Artista versátil, que espalhou o seu talento pela caricatura,
o desenho, o cartoon, a pintura e a cerâmica,
num desbordar de formas de Arte combinadas com certeiro e acutilante Humor.
A
personalidade artística de Rafael Bordalo Pinheiro tem sido tão divulgada que
dispensa a inserção de mais uma nota biográfica, para juntar a tantas outras
que têm aparecido, ultimamente, a propósito do centenário do Museu que tem o
seu nome.
O
que talvez seja menos conhecido, porque nem sequer costuma ser mencionado, é o
facto de ter existido o tal episódio de “ocupação” do Museu, em 1989, em
circunstâncias que me deram o privilégio de ser um dos seus protagonistas – daí
que tenha de pedir desculpas antecipadas, pelo facto de, ao contar o que se
passou, ter de usar a primeira pessoa do singular… É que, na verdade, o caso
também foi, ele próprio, singular.
O MUSEU E O SEU
MECENAS
Comecemos,
como é devido, pelo princípio.
O
nome do Museu é bem conhecido, e muita gente o sabe de cor, como também sabe
onde ele está situado: em Lisboa, lá ao fundo do Campo Grande, à direita de
quem vai para o Lumiar, confrontando-se com outro Museu, do lado oposto do
jardim – o da Cidade de Lisboa.
Menos
conhecido é o nome de quem o criou e lhe deu forma e conteúdo. O Museu foi
inaugurado, há 100 anos, por iniciativa particular do poeta e panfletário
republicano Ernesto Cruz Magalhães,
que, por ser um grande apaixonado pela obra do artista, resolveu reservar, naquela
que era então a sua moradia particular, três salas dedicadas a expor a sua
colecção privada de obras de Rafael Bordalo Pinheiro. Era um espólio muito
importante, de carácter pessoal e de enorme riqueza, reunindo correspondência,
objectos pessoais, muitos desenhos originais, algumas pinturas, a obra gráfica,
incluindo 3.500 exemplares de gravura e 3.000 originais, e ainda cerâmica, com 1.200
peças.
Ernesto
Cruz Magalhães era um intelectual, autor de várias obras literárias, que não
tiveram grande divulgação. Era, também, um homem rico, sem descendentes a quem
deixar a sua fortuna. Assim, com o à-vontade de quem vivia desafogadamente, podia
dedicar-se plenamente àquilo que lhe dava prazer: colecionar a variada obra de
Rafael Bordalo Pinheiro, de quem era fervoroso admirador. A tal ponto que,
tendo começado por encher parte da sua moradia particular com trabalhos do
Artista que tanto apreciava, resolveu finalmente que a sua casa seria transformada,
agora totalmente, num Museu, a ser oferecido à Cidade.
É
assim que o Museu mais antigo do país celebra agora os 100 anos dedicados à
divulgação da obra do artista criador do Zé Povinho, que se mantém como a
caricatura do português que faz "manguitos contra as injustiças".
O
fundador acabou, deste modo, por legar oficialmente o Museu Bordalo Pinheiro à Câmara
de Lisboa, depois de algumas obras de remodelação e ampliação. Mas… há um aspecto
pouco conhecido, e que só viria a ser revelado em 1989, muitos anos após a
morte do doador. É esse pormenor que venho contar aqui.
UM AUTARCA
GENEROSO E AMIGO DE RIR
Por
essa altura (fins dos anos oitenta), era presidente da Câmara Municipal de
Lisboa o Engenheiro Krus Abecasis – e, por outro lado, escutavam-se então, na
capital como em todo o país, uns certos programas de Rádio que eram apreciados
praticamente por toda a gente: os famosos programas dos Parodiantes de Lisboa (aos quais estive muito ligado, porque,
durante anos, neles trabalhei como copywriter,
tendo escrito uns largos milhares de diálogos, e dirigindo simultaneamente o
semanário Parada da Paródia).
Em
conversas informais entre o Presidente Abecasis e José Andrade, que, nos Parodiantes, personificava o famoso Inspector Patilhas e o não menos popular
Jack-Taxas, surgiu a ideia de ser
criado um Museu dos Parodiantes, dado
o prestígio de que estes então gozavam, tendo até recebido a Medalha da Cidade.
Fui
convidado para aderir à ideia, partilhando a gestão do projecto. Os meus
parceiros de trabalho seriam: o dr. Osvaldo Macedo de Sousa, experiente organizador
de exposições e festivais de Humor; e o Pintor Vítor Milheirão, com formação em
Conservação de Museus, e então chefe do sector de Restauro da Gulbenkian. Esta
equipa sugeriu desde logo algo bastante mais abrangente que a ideia original: a
criação de uma grande “Casa do Humor”,
onde se realizassem exposições, reuniões e outras manifestações ligadas ao tema
– com a natural preponderância e maior protagonismo dos Parodiantes.
Lançámo-nos
na busca de local apropriado, em Lisboa – mas não foi fácil encontrar o que
procurávamos. Por uma ou outra razão, as várias casas, pavilhões e palacetes
visitados não ofereciam as condições necessárias…Então, foi o próprio
Presidente da CML (que estava interessadíssimo no caso, ele que gostava muito
de Humor, mau-grado a cara séria que habitualmente exibia…) a sugerir que,
estando o Museu Bordalo Pinheiro fechado para obras, se instalasse ali
(provisoriamente) a nossa Casa do Humor,
até que esta pudesse ser transferida para um local novo, uma galeria
apropriada, que iria ser construída em breve nas traseiras do Museu.
E
assim se fez.
- Catálogo da primeira Exposição:
“Paródias em Parada – Da ‘Paródia’ de Rafael
Bordalo Pinheiro à ‘Parada da Paródia’ dos Parodiantes de Lisboa” – capa e
interior
A POLÉMICA
“OCUPAÇÃO”
É
nesta altura que surge uma inusitada polémica… A Dra. Irisalva Moita, que era,
ao tempo, Directora de todos os Museus de Lisboa, levantou um inesperado obstáculo.
Segundo ela, os Parodiantes estariam a ocupar, ilegalmente, aquele espaço… Porquê? Porque, na escritura
de cedência da moradia de Ernesto Cruz Magalhães, estava expressamente mencionado
que aquela casa jamais poderia ter outro uso, para além da exibição da obra de
Bordalo! Mais: se tal acontecesse, a propriedade teria, estatutariamente, de
passar para a posse… do Jardim Zoológico de Lisboa!
Mas,
tendo sido muito bem esclarecida a situação provisória daquela “ocupação” (sugerida,
aliás, como foi explicado, pela própria Câmara, e só para aproveitar a
circunstância de o Museu estava então em obras), e também porque a estadia só duraria
enquanto se esperava pela construção do novo espaço – tudo ficou claro, e a “Casa do Humor” foi inaugurada
oficialmente, no Dia da Cidade (25 de Outubro) de 1989.
Nela
chegaram a realizar-se várias Exposições, sempre com o Humor em primeiro plano.
A primeira tinha por tema “Paródias em
Parada – da ‘Paródia’ de Rafael Bordalo Pinheiro à ‘Parada da Paródia’ dos
Parodiantes”. Seguiu-se a “Exposição
e Encontro Luso-Brasileiro de Humor”. Depois, uma exposição de “Esculturas” do cartoonista Augusto Cid. E, finalmente, “O Humor e A Bola”, com os cartoonistas
daquele jornal desportivo.
Durou menos de dois anos esta “Casa do Humor”. O progressivo apagamento
da actividade dos Parodiantes ditou o
fim do projecto.
Hoje,
no novo espaço que lhe seria destinado (o qual, esclareça-se, está em
funcionamento, desde há vários anos, com excelentes condições), realizam-se
regularmente exposições e outras iniciativas, algumas delas ligadas ao Humor.
Isto é: a “ocupação” teve duração muito
breve, e a ideia original acabou por esfumar-se, juntamente com os Parodiantes, entretanto também desaparecidos,
excepto na recordação de muita gente que ainda se lembra deles – mas não guarda
qualquer memória de uma “Casa do Humor
“que não foi, mas podia ter sido, uma ideia cheia de Graça Com Todos…
Sem comentários:
Enviar um comentário