O Judeu de Bernardo Santareno foi
publicado há 50 anos.
Obra-prima
da literatura dramatúrgica portuguesa do século XX (e de todos os que vierem),
é ponto cimeiro do extraordinário repertório teatral criado por António
Martinho do Rosário, nome civil do dramaturgo nascido a 19 de Novembro de 1920
na scalabitana freguesia de Marvila.
O Judeu marca, também e ainda, a incursão
de Santareno na dimensão épica do entrecho discursivo-dramático, monumento que
alguns tolos (críticos de pacotilha, revolucionários de café) acharam
“irrepresentável em palco”. (Talvez os engulhasse o parentesco brechtiano da
viragem formal da escrita do Santareno pós-neo-realista.) Mas não só. A peça de
Santareno tem por núcleo primacial a tragédia pessoal de António José da Silva
(1705-1739), autor, como Santareno, de uma produção dramática incómoda
(exasperante até) para o regime seu contemporâneo. As sátiras espirituosas
deste cristão-novo (como As Guerras do
Alecrim e da Manjerona) caíram mal, para dizer o mínimo, entre os
intolerantes e fanáticos monstros da “Santa” Inquisição, que de muito mais não
precisaram para o queimar em público auto-da-fé a 18 de Outubro de 1739.
Retratado
& retratista (António ambos) irmanam-se na desventura trágica das
respectivas existências terrenas. A António José da Silva corresponde Bernardo
Santareno do paralelo modo como ao Santo Ofício dos séculos XVI a XIX
corresponde a PIDE do século XX. A polícia política de Salazar não extinguiu
fisicamente, é certo, Bernardo Santareno – mas tudo fez para lhe sufocar a
Obra, a torrencial & primorosa obra teatral com que Santareno fustigou o
despotismo ao tempo mesmo que exalçava a peremptoriedade da dignidade humana,
essa dignidade que outra coisa não é, ou outro nome não tem, que isto & este:
Liberdade (e da incondicional).
Em e a
partir desse remo(r)to ano de 1966, O
Judeu não pôde, naturalmente
(aqui, o itálico não é de resignação fatalista mas de fatal acusação), ser
levado à cena. Saiu em livro, para prontamente ser perseguido pelas feras
cinzentas & analfabetas do salazarismo, que nessa década de 60/XX já
estertorava de necrose. Todavia, um facto triste veio adensar a solidão
vitalícia do grande escritor. (Faço aqui parágrafo para mais distintamente vos sublinhar
a injustiça e a ingratidão dos factos:)
Não
havendo, depois do 25 de Abril, qualquer razão (bem antes pelo contrário) para não representar O Judeu, as tricas & baldricas aparentemente fatais do milieu intelectual(óide…) português
obstaram a que a magnífica peça tivesse palco & plateia antes da morte física de Bernardo
Santareno. Com efeito, o grande dramaturgo, morrendo a 30 de Agosto de 1980,
não assistiu já à estreia do seu opus-magnum,
que ocorreu apenas e quase meio ano depois (a 20 de Fevereiro de 1981, no
Teatro Nacional de D.ª Maria, com encenação de Rogério Paulo). Bem e
acertadamente andou Luiz Francisco Rebello quando escreveu (in O Jornal de 5/9/1980):
“Santareno não morreu na fogueira acesa pela
Inquisição para suprimir o Judeu da sua obra-prima […]mas
consumiram-no as chamas de mil pequenos fogos ateados pela mesquinhez, pela
intolerância, pelo ódio, até pela indiferença às vezes mais cruel ainda, que
desde muito longe, desde Gil Vicente e mais atrás, têm sufocado a respiração do
teatro português.”
Consolemo-nos,
digo eu, com a certeza de o gigante Santareno ter morrido na consciência muito
íntima da sublime valia não só de O Judeu
como de toda a sua Obra literária, a
qual, resistindo à corrosão inapelável do Tempo, se iniciou em 1954 com A Morte na Raiz (poesia), permanecendo
viva & actual para além da extinção corpórea do Homem/Artista que no-la
deu.
Resta-nos
demonstrar, como Público & como Povo, que somos merecedores de tão
descomunal, tão alta, tão preciosa oferenda. Ou então que, não dela
merecedores, ardamos a frio nessa labareda de gelo chamada esquecimento.
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