Vem tu daí comigo, meu justo & meu fiel
Leitor, ao quintal das traseiras da minha lembrança. Concede-me esse obséquio
que, impagável embora, tentarei remunerar-te mercê de uma Língua limpa e, como
tu, fiel e justa.
Tenho trinta anos. O senhor meu Pai morre há
bocadito. Eu bato com a porta. Tenho trinta anos e estou há anos de mais na
Escola. Desemprego-me do giz & da ardósia. Vou para Lisboa.
Ânimo que a Lisboa me leva: viver, se não do
que escrevo, para o que puder escrever. Escolhi bem o exílio: Lisboa é a
brancura perpétua, escândalo de cal que, qual mulher fácil, se oferece sem
preço à veia aberta do Tejo.
Adapto-me logo: a pé, venho dos Prazeres à
Alameda para (re)conhecer tudo. Franqueio as Águas-Livres, espreito de longe a
podridão exposta do Casal Ventoso, tenho cuidado com a carteira quando roço os
manhosos de Alcântara, da de São Paulo ao Arsenal colho a sombra já
mediterrânica que encharca as casas velhas, pesponto, pedestremente sempre, a
Áurea e a Augusta, descambo afinal no mesmo Rossio onde os senhores pais do Eça
tiveram um quarto-andar.
É bonita, a Velha Olisipo. Às Portas de Santo
Antão, que Rua de Eugénio dos Santos foi mas ingratamente deixou de ser,
apetece-me pipis de frango imiscuídos
em pimenta e caril. Vou-me a eles.
Enquanto tasquinho as entranhas aviárias e
impregno as papilas gustativas de indianas especiarias, sei muito bem que estou
existindo sem doença nem remédio na Cidade da multidão chamada Fernando Pessoa,
que chamou nomes a Deus, e do douto doutor tomarense chamado José-Augusto
França, que felizmente Deus ainda não chamou.
De ali, saio a ver o Passeio Público, a que
têm a mania de chamar Avenida da Liberdade. Subo, subo, balão de todo.
Escancara-se-me o Marquês, o tremendo anti-jesuíta da Reconstrução pós-1755.
Saturo-me sem saciedade possível de todo o articulado geométrico, amplo,
respiratório. A luz é tanta, mas tanta, que chega a doer nos ossos da cara. Compasso
o passo ao ritmo capital da Cidade. Finjo que sou feliz, que sou liberto, que
nunca deixarei de ter trinta anos nem de ser órfão, ou órgão, de Pai.
Tenho um quarto no Bairro dos Artistas, a
poucas passadas do Areeiro. Vinte-seis continhos por mês e por baixo da mesa:
não há papéis nem Finanças para ninguém. Trabalho ali aos Mártires da Pátria, Jardim
do Torel, tão perto do Irmão Doutor José Thomaz de Souza Martins, esse tão bom
médico, esse tão bom homem. Recebo sessenta e duas milenas: é curto, mas tem de dar. E dá. Foi dando.
Repara agora, meu Justo & meu Fiel: há quarta-feira
europeia, os energúmenos dos cachecóis infestam o metro, há que evitá-los pelo
lado certo da noite. Vou ao bar do peep-show
sito ao sopé da Calçada de Santo António da Glória. O balconista chama-se
Fernando e é sportinguista. A cerveja é a trezentos paus. Ainda não aconteceu a
roubalheira da conversão do escudo em euro. Fernando teve qualquer coisa a ver
com o Parque Mayer, ali tão perto: não sei se uma nostalgia teatral, se uma
mulher. Não inquiro. Saio.
É Lisboa outra vez: se eu quiser, dou à doida
pela Fontes Pereira de Melo, devasso os Campos, chego a Campolide. Mas não
quero. Quero antes isto: submeto-me à paranóia descomunal da fugacidade do
Tempo, tenho mas é 52 anos e dou-me de cara(s) a ti, meu Fiel, meu Justo, num
jornal que é, afinal, de Santarém, primeiro e último apeadeiro até à Coimbra de
que nunca deixarei de ser, por mais boa que ela vá.
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