Sonhei há tempos com a minha morte.
Não foi um sonho mórbido. Teve, pelo
contrário, qualquer coisa de apaziguamento. Deu-me mais placidez do que acidez.
Posso contar-Vos, claro.
Parece que a minha morte é uma senhora.
Tem a minha idade: nasceu no meu nascimento. Apareceu-me sem
fogos-fátuos-de-artifício. Os sonhos são filmes-mudos e a preto-cinza-e-branco,
pelo que preciso de escrever aqui “violeta” para Vos dar a ver o vestido dela;
e de oculta aparelhagem áudio surdia um fio que tanto podia ser de Bach como de
Tony de Matos.
Era num relvado violeta também, posto que
o escrevo. Arvoredo disperso exclamava a prosa do ar. Eu tinha uma caixa
pequena de queijadas idênticas àquelas de que um homem se esquece em Sintra e
uma botelha plena de um vinhito branco muito enxuto, muito decente, muito capaz
de embaciar o palato e a espera por melhores dias.
Apesar da amplidão por assim dizer
cinemascópica do cenário aberto, não havia passarada, facto que me angustiava
um bocadito. Um trecho de rio fulgurava de mercúrio vivo ao canto exacto da
tela. Medas de palha enxuta torravam ao sol frio. A senhora & eu, era
descalços que estávamos.
Uma espécie de curiosidade serena quis
que eu lhe desvelasse o rosto. Consegui, mas não foi fácil. Bastava não olhá-la
directamente. Bastava fechar os olhos para descortinar na perfeição a sua
efígie: era a minha cara mas em rapariga. Aquilo fez-me sorrir: a minha morte usava
mamitas e tinha de urinar sentada.
Não falámos um com a outra por a absoluta
desnecessidade de poluirmos com sílabas oxidadas a qualidade limpa-metal da
quietude. Entendemo-nos como nem nos melhores casamentos.
Ela mordiscou um doce, serviu-se a si
mesma de um cristal de branco, suspirava de quando em vez como se fosse ela a
sonhar. Eu ainda quis recorrer à telepatia para lhe falar da importância
devastadora que a poesia de Carlos de Oliveira, tão precocemente desaparecido,
teve – e continua a ter – na minha vida, mas a senhora telegrafou-me isto sem
abrir a boca: “Essa morte não era eu.”
Condenado como toda a gente a reatar os
liames do re-nascimento por força do despertar, despertei. Dei por mim sozinho
na cama como um feixe de ossos numa cova sem leões, Daniel sendo embora. A boca
sabia-me a branco agora morno e a pedacitos de Sintra. Não me sabia a amargura,
como tão de costume.
Até hoje, não voltei a vislumbrá-la.
Tenho ido à senhora minha médica, a contagem dos glóbulos-brancos não indicia
leucemias, o tabaco tem sido muito mas queima-se bem tipo ashes to ashes, o apetite varia com a exposição maior ou menor às
malevolências da política e o meu Benfica, enfim, parece querer saudar de novo
a memória do senhor meu Pai.
Estou agora numa expectativa quase
trémula: morro de curiosidade. Morro de curiosidade por acabar, ou seja, morro
de curiosidade por acabar sabendo quem me voltará primeiro – se ela, se os
pássaros.
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