terça-feira, 24 de maio de 2016
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Rosário Breve Duas Suíças ou menos por Daniel Abrunheiro
1 “Tenta
viver como se fosse manhã.”
Isto é Nietzsche lido por Bloom (H.).
Parece-me boa injunção. Não é fácil: a noite figurada parece invencível as mais
vezes. Não é fácil – mas é possível. E se é possível, está ao alcance.
Em caleidoscópio, as imagens do mundo
concorrem-nos sem cessação. A atenção dispersa-se ao sabor (quantas vezes
amargo) dos estímulos. A honestidade existe, mas não campeia. O banditismo
parece integrar a essência humana. Os valores tidos por essenciais (direito à
vida, ao trabalho, à saúde, à honra, à paz) podem ser e são escamoteados a
pretexto de fantasmas obstinados: a superstição, a ganância, a ignorância, o
preconceito, a dominação.
A veracidade evidente destas constantes é avessa
à tal manhã existencial. Mas é
possível combatê-la – antes que se faça tarde.
2 Na exígua paróquia do Universo chamada
Portugal, os últimos tempos voltaram a ser fustigados pela euforia bêbeda da bola. Pelas redes sociais, umas (poucas)
almas ainda verberaram tanta barulheira gráfica. Tipo assim: “Ah Portugueses dum caraças, se o desemprego,
a saúde, a justiça e a austeridade forçada vos fizessem cerrar sempre fileiras
combativas assim, seríamos para aí duas Suíças”. Mais ou menos isto. O
espírito era este, se não o texto. Mas – quê? Rui Jorge Vitória Jesus, Jonas
Fisgas Slimani Pistolas etc. etc. etc. etc.
3 Nos entrementes, há quem queira (e o queira
muito) intoxicar a opinião pública com a antinomia Escola Pública – Colégios
Particulares/Cooperativos. É natural
que sim: estão em jogo os milhões de todos a saque de uns poucos. A necessidade
pretérita dos ora famigerados contratos
de associação tem sido em muitos casos, mercê do crescimento da oferta
pública de rede escolar, debelada. Assim sendo, proponho três equações simples:
Dinheiro Público – Escola Pública; Dinheiro Privado – Escola Privada; Caixa de
Esmolas – Ensino Religioso. Pim, pam, pum. Posto de outra
maneira: onde o contrato de associação se justifique (e há
casos em que sim, note-se bem), cumpra-se; onde não, rasgue-se. E siga(mos) para bingo.
4 Se duas causas há que não apenas me não merecem simpatia como bem antes
pelo contrário, elas são:
- a dos taxistas de Lisboa;
- a dos suinicultores nacionais.
Há tempos, na TV, um taxista queixava-se de que “por causa da Uber, só fazemos serviços para a chungaria”,
acrescentando que “a polícia anda sempre
em cima de nós e se levamos um euro a mais é o diabo”. Isto nem carece de
comentário.
Quanto à suinicultura nacional, relembro tão-só que a ganância impura e
simples, anos/décadas a fio, tem levado os produtores íncolas a desprezar as
mais básicas condições ecológico-ambientais suas envolventes. ETAR? Os
municípios que as paguem. Sei, infelizmente sei, muito bem do que falo:
habitante há anos de uma região enxameada de pecuárias afins, não desconheço os
recorrentes (e não punidos) atentados contra, por exemplo, os aquíferos e os
flúvios. Como se também os suinicultores estendessem à chungaria consumidora a pouca higiene do seu/deles porquinho.
5 Onde isto já vai: comecei citando Nietzsche e já
ronco… Não é grave, porém: a realidade ficará exactamente no mesmo sítio,
pesada, inamovível, indiferente a estas minhas filosofices impotentes. Salva-me
todavia o facto vero & mesmo de ser manhã. Objectivamente manhã.
Horariamente manhã. Tenho o dia todo (tê-lo-ei?) por minha conta. Na cama que
dele fizer, a noite passarei.
E nela sonharei, naturalmente que sim, com o meu tetra na próxima época.
Assim seja.
quinta-feira, 12 de maio de 2016
Crónica Rosário Breve Com a senhora de violeta por Daniel Abrunheiro
Sonhei há tempos com a minha morte.
Não foi um sonho mórbido. Teve, pelo
contrário, qualquer coisa de apaziguamento. Deu-me mais placidez do que acidez.
Posso contar-Vos, claro.
Parece que a minha morte é uma senhora.
Tem a minha idade: nasceu no meu nascimento. Apareceu-me sem
fogos-fátuos-de-artifício. Os sonhos são filmes-mudos e a preto-cinza-e-branco,
pelo que preciso de escrever aqui “violeta” para Vos dar a ver o vestido dela;
e de oculta aparelhagem áudio surdia um fio que tanto podia ser de Bach como de
Tony de Matos.
Era num relvado violeta também, posto que
o escrevo. Arvoredo disperso exclamava a prosa do ar. Eu tinha uma caixa
pequena de queijadas idênticas àquelas de que um homem se esquece em Sintra e
uma botelha plena de um vinhito branco muito enxuto, muito decente, muito capaz
de embaciar o palato e a espera por melhores dias.
Apesar da amplidão por assim dizer
cinemascópica do cenário aberto, não havia passarada, facto que me angustiava
um bocadito. Um trecho de rio fulgurava de mercúrio vivo ao canto exacto da
tela. Medas de palha enxuta torravam ao sol frio. A senhora & eu, era
descalços que estávamos.
Uma espécie de curiosidade serena quis
que eu lhe desvelasse o rosto. Consegui, mas não foi fácil. Bastava não olhá-la
directamente. Bastava fechar os olhos para descortinar na perfeição a sua
efígie: era a minha cara mas em rapariga. Aquilo fez-me sorrir: a minha morte usava
mamitas e tinha de urinar sentada.
Não falámos um com a outra por a absoluta
desnecessidade de poluirmos com sílabas oxidadas a qualidade limpa-metal da
quietude. Entendemo-nos como nem nos melhores casamentos.
Ela mordiscou um doce, serviu-se a si
mesma de um cristal de branco, suspirava de quando em vez como se fosse ela a
sonhar. Eu ainda quis recorrer à telepatia para lhe falar da importância
devastadora que a poesia de Carlos de Oliveira, tão precocemente desaparecido,
teve – e continua a ter – na minha vida, mas a senhora telegrafou-me isto sem
abrir a boca: “Essa morte não era eu.”
Condenado como toda a gente a reatar os
liames do re-nascimento por força do despertar, despertei. Dei por mim sozinho
na cama como um feixe de ossos numa cova sem leões, Daniel sendo embora. A boca
sabia-me a branco agora morno e a pedacitos de Sintra. Não me sabia a amargura,
como tão de costume.
Até hoje, não voltei a vislumbrá-la.
Tenho ido à senhora minha médica, a contagem dos glóbulos-brancos não indicia
leucemias, o tabaco tem sido muito mas queima-se bem tipo ashes to ashes, o apetite varia com a exposição maior ou menor às
malevolências da política e o meu Benfica, enfim, parece querer saudar de novo
a memória do senhor meu Pai.
Estou agora numa expectativa quase
trémula: morro de curiosidade. Morro de curiosidade por acabar, ou seja, morro
de curiosidade por acabar sabendo quem me voltará primeiro – se ela, se os
pássaros.
segunda-feira, 9 de maio de 2016
quarta-feira, 4 de maio de 2016
O Não-Jornal “ O Macaco” - Um caso de Imprensa Satírica por António Gomes de Almeida
Um jornal de Humor faz-se, em
princípio, para ter graça. Se esse objectivo não é conseguido, isto é, se o
jornal não tem graça nenhuma, fica a desconfiança de que, provavelmente,
aqueles que o fazem não são lá grandes Humoristas – se calhar, são mesmo uns
tristes… Conhecem-se vários exemplos, que não interessa mencionar aqui, para
não entristecer os leitores… Mas talvez interesse, isso sim, descrever o caso
de um jornal de Humor que tinha tudo o que parecia necessário para vir a ter
graça, mas perdeu a oportunidade de o comprovar, porque… não passou do Número
Zero! Foi, portanto, um não-jornal…
Tudo aconteceu a meio do
revolucionário ano de 1974, quando se viviam por cá as emoções e as angústias
do PREC, o tal Processo Revolucionário Em Curso,
que os jovens de hoje não imaginam o que foi – só o conheceram bem aqueles que
são agora delicadamente designados pelo respeitoso nome de seniores (naquele
tempo, chamavam-se os chatos dos velhos). Os
acontecimentos políticos e sociais dessa época deram origem ao aparecimento de
uma catadupa de jornais ditos de Humor, quase todos de vida efémera (ver, a
propósito, noutro local deste mesmo site do CPI, o texto
intitulado “Que é feito dos nossos jornais de Humor?”). Todos eles
faleceram de morte natural – mas houve um que se finou, de forma algo original,
ainda antes de ter nascido. Chamou-se (ou melhor, iria chamar-se) O
Macaco. E esta é a sua breve história.
Tenho de pedir desculpa por narrar
estes factos na primeira pessoa, garanto que não é por vaidade, é só porque não
encontro melhor forma de explicar o que se passou, ao ser convidado para ser o
Director desse jornal. Se calhar porque tivera, anteriormente, algumas
experiências, umas com êxito, outras nem por isso, na direcção de publicações
de Humor. Dirigira O Mundo Ri, em 1954, e O Picapau, em 1955.
Entre 1960 e 1962, tinha dirigido o semanário de humor dos Parodiantes
de Lisboa (e este episódio também pode ser lido no site,
sob o título “O fenómeno Parada da Paródia”). Depois, entre 1972 e 1974,
tinha escrito mais de uma centena de crónicas, sob o título Os Pontos,
com o pseudónimo Óscar Pontinho, para a revista Rádio &
Televisão, propriedade da Radioprel (empresa intimamente ligada à Sociedade
Industrial de Imprensa, sendo esta a proprietária do Diário Popular, e
funcionando todas estas entidades no mesmo edifício, na Rua Luz Soriano, no
Bairro Alto).
Terá sido por causa desse passado
ligado ao Humor (que algumas “pessoas sérias” poderiam talvez considerar pouco
recomendável…) que fui convidado para dirigir o projecto de um novo jornal
satírico, que viria a ser O Macaco. Bem… viria a ser é força de
expressão, porque o projecto, afinal, não passaria disso mesmo: de projecto.
O Diário Popular era
então um vespertino com grande popularidade e prestígio, tendo como
colaboradores alguns dos mais acreditados jornalistas da época.
O convite, muito honroso pela
confiança que atribuía à pessoa do convidado, consistia em produzir um jornal
de humor, com um aspecto físico pouco usual em publicações deste género: uns
imensos 43x30 cm, o mesmo formato do Popular. Seria um semanário,
impresso a offset, a cores, com saída à sexta-feira, distribuído pela mesma
Sociedade Industrial de Imprensa, e vendido ao preço de 5 escudos. A ideia era
a de testar o sistema offset, que seria depois aplicado, se tudo corresse bem,
ao próprio Diário Popular.
Aceite o encargo, seguiu-se a
instalação da Redacção, sempre na Rua Luz Soriano, e os convites aos futuros
colaboradores, na sua maioria já conhecidos por terem pertencido a idênticas
equipas anteriores. O entusiasmo era grande, porque os acontecimentos políticos
ainda recentes (o 25 de Abril tinha poucos meses) davam-nos a esperança de
podermos, finalmente, fazer aquele tipo de Humor que a Censura nos proibira até
então. Verdade que havia, além dessa expectativa, também alguma aflição meio
escondida: com a liberdade total que nos tinha sido anunciada, seríamos capazes
de produzir material humorístico de jeito? Ou os condicionalismos de tantos
anos levar-nos-iam, inconscientemente, a manter a prudência auto-censória a que
nos tínhamos habituado? Enfim, logo se veria, agora, o essencial era formar a
equipa!
OS COLABORADORES
Foi fácil e rápida a constituição
do grupo de Humoristas que iriam trabalhar n’O Macaco. Na verdade, a
única dificuldade surgiu, um tanto inesperadamente, por razões políticas! Toda
a gente andava muito atarefada a inscrever-se nos Partidos políticos que iam
surgindo todos os dias, e a resolver qual a bandeirinha ideológica a escolher.
Por isso, alguns, que tinham feito parte de equipas anteriores, trabalhando
lado a lado em publicações em que só era importante produzir coisas com graça,
punham agora dúvidas, perguntando antecipadamente: “Mas… o jornal vai ser o
quê? Socialista, comunista, maoista? Vai ser esquerdista, direitista?...”
Deu algum trabalho explicar que o jornal deveria ser, principalmente, Humorista…
Enfim, lá se constituiu a turma, que ficou formada por um conjunto de
redactores de que faria parte Fernando Ávila (que era jornalista
no DP, com especial propensão para escrever sobre ciclismo,
acompanhando apaixonadamente a Volta a Portugal; era também autor de Teatro de
Revista, em parceria com autores de sucesso, como Aníbal Nazaré, Amadeu do
Vale, etc.); também o Carlos Miranda, que já colaborara noutros
jornais de humor (e, curiosamente, era também muito ligado a reportagens sobre
Ciclismo); este viria, mais tarde, a ser Director do jornal A Bola; Mário-Henrique
Leiria, sim, esse mesmo, o surrealista, autor dos Contos do
Gin-Tónico, um revolucionário na Política e na Arte, que deixou escrito um
inédito “Dicionário Modesto para Famílias de Poucos Haveres” e,
ultrapassando o seu estado físico debilitado, trazia uma alegria contagiante à
Redacção; Álvaro Magalhães dos Santos, que já colaborara, com
rubricas de humor, em vários diários, depois de ter sido descoberto na Parada
da Paródia; e ainda mais alguns Humoristas talentosos. A estes se juntava
um excelente lote de ilustradores, encabeçado pelo genial João Martins,
e contando ainda com o talentoso Zé Manel, mais o José
Antunes, o Vitor Milheirão e o Ricardo Reis,
todos excelentes e todos “repescados” de aventuras humorísticas anteriores. O
departamento gráfico estava entregue a Henrique Tenreiroe a
publicidade a António Franco, dos quadros da SII.
PREPARANDO O LANÇAMENTO
Foi acordado que o Diário
Popular, na sua qualidade de “patrono” do novo semanário, faria uma
campanha de informação, precedendo o lançamento do primeiro número, previsto
para Novembro de 1974. E assim aconteceu. Durante vários dias, as páginas do
popularíssimo diário vinham salpicadas com anúncios da próxima saída d’O
Macaco. Entretanto, iam sendo preparados os originais para os primeiros
números – particularmente para um “Número Zero”, que serviria de mostruário dos
que viriam a seguir, e que seria oferecido aos leitores, acompanhando uma
edição normal do Diário Popular – passando O Macaco,
a partir da semana seguinte, a ser vendido separadamente. Assim tinha sido
previsto e combinado.
Na véspera, isto é, no dia 28 de
Novembro, uma página inteira anunciava: “O Macaco – amanhã é dado!
(Poderá encontrá-lo aqui, incluído como separata de oito páginas do “Diário
Popular”, a cores e a preto e branco, impresso em offset, com a sua graça
escondida e o rabo de fora…) P.S. – Apenas por ser um ZERO e amostra sem
valor é de borla – os outros números vão ser A PAGAR.”
Na Redacção, vivia-se a
expectativa do acolhimento que o público daria ao jornal, quando visse, no dia
seguinte, a amostra que tínhamos preparado do seu conteúdo.
UM “MACACO” QUE NÃO CHEGOU A SAIR
DO SEU GALHO...
Só que… no dia seguinte, uma
minúscula notícia, meio escondida numa página discreta do Diário
Popular, informava: “O Macaco – Por motivos de ordem técnica, alheios à
nossa vontade, não nos é possível incluir hoje, em separata, e conforme
tínhamos anunciado, o número zero do semanário humorístico “O Macaco”. Do
facto, apresentamos desculpas aos nossos leitores.”
Ora, na verdade, os “motivos de
ordem técnica” não tinham nada de “técnica”, tinham mais a ver com “política”…
A efervescência era então muito grande, tanto nas Redacções como nas Oficinas
dos jornais de Lisboa, em alguns dos quais, embalados pelas teorias de esquerda
assimiladas um tanto à pressa, no calor da Revolução, os trabalhadores gráficos
pretendiam sobrepor-se aos jornalistas, mesmo no que se referia ao conteúdo dos
textos. E o mesmo quanto às opções editoriais – o que incluía iniciativas como
a da criação de um novo título.
Foi assim que uma delegação do
pessoal gráfico veio informar-nos de que resolvera, à última hora, na sequência
de um plenário, impedir a saída d’O Macaco. E esclareceram mesmo, um
pouco embaraçados: “Não é nada contra vocês, até respeitamos o vosso
trabalho… É contra a Administração, que temos suspeitas de andar a preparar
algumas manobras contra os trabalhadores!”…
Tais “manobras” nunca chegaram a
ser concretizadas...
Mas foi assim que o Número Zero d’O
Macaco, já impresso, com a apresentação do conteúdo e do estilo que
pretendíamos dar ao jornal, e uma amostra dos talentos dos seus vários
colaboradores, não chegou às mãos dos leitores, e acabou ingloriamente
guilhotinado nas oficinas, e despejado no contentor do papel sem uso…
Com alguma dificuldade,
salvaram-se dois exemplares, cuidadosamente conservados, como peças raras que
são, e como testemunhos de um “hebdomacaco com macaquinhos no sótão”,
como se lia no cabeçalho – um projecto de semanário de humor, um “não-jornal”
que, devido a circunstâncias muito peculiares, acabou antes de começar e,
por isso, não chegou a ter, afinal, graça nenhuma!...
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