domingo, 29 de novembro de 2015

Rosário Breve Crónica ourives por Daniel Abrunheiro

I.
Não há razão para euforia. Há razão para contentamento.
A euforia é bebedeira dos nervos. O contentamento é uma vindicta mansa, lúcida, avisada.
Posto isto, há que apurar se:
1) a Esquerda existe (mesmo);
2) a Esquerda presta;
3) a Direita, cumprindo o verbo em 1), não logra tão-depressa o verbo em 2).
Trocadilhando a preceito, a Esquerda tem de ser destra, por isso mesmo que a Direita é sinistra. E ainda: quanto mais a Esquerda se adestra, menos a Direita nos amestra.
Pronto – esta parte já cá está & já lá mora. É como no testemunho do próprio: o gigante olímpico (e muito nosso) Carlos Lopes, ao atingir a meta de ouro da maratona de Los Angeles/1984, exultou consigo mesmo través este pensamento definitivo: “Esta, já ninguém ma tira!”.
Escrevo pouquíssimas horas depois do ocaso dos pífios PàFistas. Alerto: não me/nos basta que o primeiro-ministério mude de mãos – o crucial é que mude de rumo.
Que, paulatinamente embora, nos devolva a todos algum manuseamento de moedas, algum acesso a víveres, algum retorno ao trabalho que compense cada final de dia.
Que cesse de des-Educação. Que deixe de propiciar a in-Justiça. Que não mais privatize ao desbarato o pan-Património. Que comece por não acabar com a Saúde. E que, entre muitas outras urgências, deixe de encarar o Trabalho como uma mania dos mal-remediados e como um estorvo dos colossos empresariais, passando a tê-lo em conta & medida como direito (até moral, até social, até cívico, até solidário) dos que não nasceram naquele tipo de berço feito daquele tipo de ouro que só pode vir das roubalheiras hereditárias.
Do caruncho de que é feito o pau do ainda supremo magistrado, temos dito & por consabido todos.
Assim seja.
II.
Chamamos “frio” ao arrefecimento que, naturalmente pois que natural, vem sucedendo ao bondoso & cálido Verão-de São-Martinho. Não sabemos o que dizemos –  frio, isto? Só os proscritos que portam pouca & fraca roupa, só os despejados de casa, só os que fantasmaticamente povoam a frigidez das ruas e o relento das noites sem porvir – só eles podem carpir a penitência baixo-centígrada da quadra. Nós outros, abonados de sobretudo, inquilinos de furtadas águas em fogos de tijolo, não. A sociedade de consumo iludiu-nos, mentiu-nos, despojou-nos. Certo estoicismo que foi das gerações nossas antanhas faz-nos falta. Não falo de, salazarentamente, louvaminhar a escassez, honrar a pobreza, adorar a miséria, venerar a tesúria – falo de, querendo, fazer mais com o pouco que nos é presente. É neste fio de pensamento que chego ao miúdo do iPad a quem roubaram o livro. Às pessoinhas frivolizadas por revistecas sinónimas de trampa multicolorida e por televisões estúpidas como a morte. Aos pobretes-mas-alegretes de espírito que repetem as argoladas autofágicas & suicidas do Passado porque o não conhecem: nem de ouvir falar, nem de querer ouvir falar dele. E ao meu Benfica, Farol da Humanidade Desportiva, não menos do que Zeus do Olimpo do Coice na Bola, que, perdendo três em três na mesma época ante o seu (aliás único) Rival, me tem acidulado as entranhas mentais e as pregas intestinas. A mim e a mais 6+6+6 milhões – e toda a gente sabe que 666 é o número místico da Besta. Porque, enfim, perder com o Sporting é o diabo. E o Diabo é que é frio mesmo.
III.
I, II, III, pim, pam, pum – chegado é o momento do remate/roda/pé. Este: duas vezes grafei supra o substantivo ouro.
Da primeira vez, foi ardil estilístico: em “meta de ouro”, queira ler-se a medalha daquele metal precioso com que Carlos Lopes tão altamente subiu todo um Povo – mais precisa e mais historicamente, a 12 de Agosto de 1984. Tínhamos nós todos, então, coisa de 20 anos.
Da segunda vez, foi estilizado truque também – mas a responsabilidade oratória é da proverbial sabença popular relativa aos bem-nascidos, materialmente falando. (Mais vernaculamente, “Quem não rouba ou não herda, não vale uma merda”.) No meu caso, “berço feito daquele tipo de ouro” é vilipêndio oriundo, talvez, da minha inveja de bêbados e de borrachos que nascem com Deus por os baixos. Mas não importa.
Importa é que saibamos distinguir o ouro que vem do muito trabalho sério, honroso & honrado (cf. toda a carreira de Carlos Lopes) e o que é mera usurpação, em e para proveito próprio, do trabalho dos outros (estás a ouvir, PS?).
De resto, calo-me em voz alta: é que, a 12/8/84, Lopes era Portugal. Mas nos outros dias, peito-de-leão de leão ao peito, era Sporting. Era, era.

E só isso é que me arrefece a euforia.

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