Eram,
antigamente eram, exclusivas de presidiários, de marinheiros e de soldados
coloniais. Refiro-me às tatuagens.
Como parece
ser (e é) tão próprio como fatal das coisas estúpidas, pegaram moda. O pessoal
faz tatuar-se muito, hoje em dia. Não ocorre às pessoas que o resultado seja o
de passarem a equivaler a espécimenes ambulantes de carcaças vivas carimbadas à
maneira do gado de matadouro. Por dentro, mudo e quedo, designo-as por tatus & tatuas. Merecem o apodo.
Tatus &
tatuas gostam particularmente do Verão. O calor (ou “a calma”, como lhe chamava o grande Sá de Miranda de “O sol é grande, caem co'a calma as aves(…)”)
despe-os e traveste-as, permitindo-lhes a exibição dos borrões frouxos que lhes
mancham o couro.
Não sei,
sentem-se talvez símbolos de alguma coisa maior do que as viditas que têm &
levam; apresentam-se talvez a si mesmos e a si próprias com algo de muito
importante para dizer que ninguém quer nem precisa de saber; julgam-se talvez
capazes de tudo, a começar por nada, aptos & prontas a mostrar, demonstrar,
cabalizar, revolucionar, espantar. A mim, no entanto, parece-me tão-só gente
que nunca mais se pode lavar na íntegra como deve ser.
Que os
penitentes dos presídios se maculem de códigos e de pertenças gangue-gregárias –
eu percebo: é apenas pueril, perigoso apenas, próprio de crianças ladronas e/ou
assassinas.
Que os
marinheiros na pele tragam do mar evidências de céu convexo – eu entendo: é
apenas Poesia, própria de gente com uma mulher em cada porto e com um porto em
cada filho.
Que os praças sentissem no Ultramar premências
de deixar escrito no próprio corpo Amor-de-Mãe-Angola-1967
– eu compreendia: Mãe, há só uma, como com a Morte acontece.
Agora,
estes tatus & estas tatuas que por aí me embaciam as dioptrias – não. Não
gosto. Sujam-se por tudo e para nada. E não me diga ninguém que tomo a parte
pelo todo: parte-me todo, tal dito.
Ainda há
bocadito, no autocarro nocturno (último da carreira, metáfora rodada e a gasóleo
do acabamento e da insensatez da viagem),
vi uma tatua. Já tinha mais do que idade para não gastar o siso todo em dentes
serôdios. Uma borboleta feia gangrenava-lhe a roxo o bíceps dextro. Em baixo, o
artelho do mesmo lado acolhia uma tarântula cega. Na tábua do peito
(mamariamente falando, a quarentona saía ao pai), floria-lhe um coração falador
que exclamava “Raul” e “Love”. E eu sei que ela agora se
amanceba com um que é Júlio, que o Raul a deixou pela Guida Florista, que na
vida só há duas hipóteses: ou Raul
Forever ou Love do tipo não-empurrem-que-há-lugar-p’a-todos.
O desastre
estético da pobrezita culminava nas asas do nariz, agrafadas ambas com piercings evocadores do arganel no
focinho dos porcos, e nas unhas de mãos & pés, as quais dez, esmaltadas a
verde, me fizeram pensar se ela não viria de jogar à porrada, fazendo-o
sangrar, com algum extraterrestre daqueles do Scharwznegger.
Coitadita.
Eu não deveria ser assim tão malévolo para com ela e para com os asininos seus
homólogos que se deslavam as dermes com anjos, estrelas, búzios, cornetas,
morcegos, zodíacos e similares insígnias do género ó-p’ra-mim-a-meter-nojo-e-ainda-por-cima-paguei-um-balúrdio-pa’-isto.
Sou um
reles bota-de-elástico, eu sei. Sou. Sei. Sim. Mas é que.
Mas é que a
tal tatua me trocou as voltas ao projectado duplo mote da crónica. Amolou-me o
ferrão. Embotou-me a verruma. Eu vinha para gozar um bocado à pala do
enigmático zootecnocrata que passou a integrar a administração do Hospital
(para humanos, em princípio) de Santarém (que já lá tinha poucos, aliás). Era
para gozar com isso – e com a Carta Educativa que a Assembleia Municipal de
Santarém ratificou à absoluta revelia das autarquias menores que lhe são
relativas e em completo desprezo pelas necessidades reais, na vida real, das
populações com suas crianças sem eira e suas escolas sem beira. Ora,
atraindo-me as hastes (por assim dizer e não desfazendo das vossas) e as lentes,
a tatua fez-me falcatrua. Mas não faz mal, afinal. Porque, enfim, sempre
simbolizam, as manchas dela, alguma coisa: a nomeação das boy-boletas e a aranha do
menosprezo e da repugnância pela Educação que é afim de todas as pesporrências
e de todas as prepotências, a começar pelas mais analfabetas, como é o caso da
nossa bronca Edilidade.
Mas, ó meu
bom Sá de Miranda, calma! Tais aves também caem, ao contrário das
tatuagens com que se mancham, a ponto de nunca mais, como deve ser, se possa
delas dizer coisa limpa e lavada.
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