quarta-feira, 17 de junho de 2015

Rosário Breve - Duas por uma resto zero - por Daniel Abrunheiro


1. O Regresso do Emigrante
À saída do comboio, sentiu que o tempo tinha mudado de espessura. A ausência tinha oxidado os pombos e as palmeiras. O jardim era do esmalte que consubstancia o futuro anterior. No coreto, fantasmas filarmónicos tocavam Roberto Carlos.
Comeu um quarto de frango numa churrasqueira enegrecida. O recepcionista da pensão aceitou-lhe as malas com um gemido artrítico.
De volta ao largo, conferiu a eternidade das mercearias, os jogadores de cartas aposentadas, a sesta dos táxis e a fragrância mortífera da desesperança.
Trinta anos em França. Doze na Alemanha. As mãos dormentes de tanto trabalho. E, agora, o regresso, essa missão impossível. As crianças tinham-se casado. As aldeias eram iguais entre si como requeijões. As pastelarias repetiam-se umas às outras como sonhos feios. Os arquitectos pariam cubos de cimento como galinhas geométricas. Os farmacêuticos aviavam pastilhas contra o problema de ter nascido. E os futebolistas da equipa local eram brasileiros que entristeciam de frio na noite dos cafés cibernéticos.
Ao jantar, na mesma churrasqueira, ainda considerou a possibilidade de voltar para trás: França, Alemanha. Mas decidiu que não, que ficaria.
Que, no próprio dia seguinte, trataria de comprar um táxi ou um baralho de cartas, de modo a poder usufruir, em pleno esmalte, da glória de Roberto Carlos tocado até nunca mais pelos benignos fantasmas da filarmónica de quando isto era vila e ele não tinha partido para sempre.
2. Ao Alcance das Mãos
Contar e ouvir histórias não são actividades exclusivas da infância. Pertencem igualmente ao mundo do envelhecimento. Porquê? Porque as histórias, próprias e alheias, narradas e ouvidas, servem para melhorar a realidade. A realidade, sim. Porque a realidade nunca é bastante. Porque raramente é bonita, construtiva, adequada. E porque a realidade sai distorcida do velho conflito entre as mãos, que representam a prática, e o coração, que é a despensa sangrenta de tudo o que realmente vale a pena. Por tudo isto, trago hoje outra história.
Era uma vez uma pessoa que tudo deixava cair das mãos. Bebé, compreendia-se que tal lhe acontecesse. Veio a puberdade e, com ela, o ostracismo. “Ostracismo” quer dizer (mais ou menos) que tudo e todos ficam longe de nós, porque todos e tudo assim o querem. Todas as coisas vinham parar ao chão, segundos depois de tentar segurá-las nas mãos. Estas eram, ao menos na aparência, normais: dez dedos e dez unhas, mais as oito linhas que marcam o delta do destino. Garfos, jornais, jarras com suas flores, anéis até: tudo acabava no chão.
Já adulto, não segurava nem empregos nem amores. Das mãos lhe caiu a vida do pai e a de um irmão. E também a do cachorro amarelo, único dos seres que tinha podido conservar, pois, como é sabido, são os animais que nos possuem e seguram.

A história acaba assim: deixou de tentar agarrar com as mãos coisas e pessoas. Descobriu que a única forma de ter está no olhar. E que, vistas as coisas assim, a realidade não é tão má como parece. Sim, mesmo aquela que temos ao alcance das mãos.

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