1.
O Regresso do Emigrante
À saída do
comboio, sentiu que o tempo tinha mudado de espessura. A ausência tinha oxidado
os pombos e as palmeiras. O jardim era do esmalte que consubstancia o futuro
anterior. No coreto, fantasmas filarmónicos tocavam Roberto Carlos.
Comeu um
quarto de frango numa churrasqueira enegrecida. O recepcionista da pensão
aceitou-lhe as malas com um gemido artrítico.
De volta ao
largo, conferiu a eternidade das mercearias, os jogadores de cartas
aposentadas, a sesta dos táxis e a fragrância mortífera da desesperança.
Trinta anos em França. Doze na Alemanha. As mãos dormentes de tanto trabalho. E, agora, o regresso, essa missão impossível. As crianças tinham-se casado. As aldeias eram iguais entre si como requeijões. As pastelarias repetiam-se umas às outras como sonhos feios. Os arquitectos pariam cubos de cimento como galinhas geométricas. Os farmacêuticos aviavam pastilhas contra o problema de ter nascido. E os futebolistas da equipa local eram brasileiros que entristeciam de frio na noite dos cafés cibernéticos.
Trinta anos em França. Doze na Alemanha. As mãos dormentes de tanto trabalho. E, agora, o regresso, essa missão impossível. As crianças tinham-se casado. As aldeias eram iguais entre si como requeijões. As pastelarias repetiam-se umas às outras como sonhos feios. Os arquitectos pariam cubos de cimento como galinhas geométricas. Os farmacêuticos aviavam pastilhas contra o problema de ter nascido. E os futebolistas da equipa local eram brasileiros que entristeciam de frio na noite dos cafés cibernéticos.
Ao jantar,
na mesma churrasqueira, ainda considerou a possibilidade de voltar para trás:
França, Alemanha. Mas decidiu que não, que ficaria.
Que, no
próprio dia seguinte, trataria de comprar um táxi ou um baralho de cartas, de
modo a poder usufruir, em pleno esmalte, da glória de Roberto Carlos tocado até
nunca mais pelos benignos fantasmas da filarmónica de quando isto era vila e
ele não tinha partido para sempre.
2. Ao
Alcance das Mãos
Contar e
ouvir histórias não são actividades exclusivas da infância. Pertencem
igualmente ao mundo do envelhecimento. Porquê? Porque as histórias, próprias e
alheias, narradas e ouvidas, servem para melhorar a realidade. A realidade,
sim. Porque a realidade nunca é bastante. Porque raramente é bonita,
construtiva, adequada. E porque a realidade sai distorcida do velho conflito
entre as mãos, que representam a prática, e o coração, que é a despensa
sangrenta de tudo o que realmente vale a pena. Por tudo isto, trago hoje outra
história.
Era uma vez
uma pessoa que tudo deixava cair das mãos. Bebé, compreendia-se que tal lhe
acontecesse. Veio a puberdade e, com ela, o ostracismo. “Ostracismo” quer dizer (mais ou menos) que tudo e todos ficam
longe de nós, porque todos e tudo assim o querem. Todas as coisas vinham parar
ao chão, segundos depois de tentar segurá-las nas mãos. Estas eram, ao menos na
aparência, normais: dez dedos e dez unhas, mais as oito linhas que marcam o
delta do destino. Garfos, jornais, jarras com suas flores, anéis até: tudo
acabava no chão.
Já adulto,
não segurava nem empregos nem amores. Das mãos lhe caiu a vida do pai e a de um
irmão. E também a do cachorro amarelo, único dos seres que tinha podido
conservar, pois, como é sabido, são os animais que nos possuem e seguram.
A história
acaba assim: deixou de tentar agarrar com as mãos coisas e pessoas. Descobriu
que a única forma de ter está no olhar. E que, vistas as coisas assim, a
realidade não é tão má como parece. Sim, mesmo aquela que temos ao alcance das
mãos.
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