De
seu/dela lado da mesa, a Senhora pergunta-me:
–
Qual é a sua Primeira Recordação da/na vida?
É
uma pergunta profissional. Clínica, não cínica. A mesa é de consultório.
Respondo:
–
No Pátio da Casa dos Pais, 1967, tenho três anos, algo debaixo de um papel ou
cartão, acho algo que me enche de alegria, alguma quinquilharia-tesouro, não
consigo saber o quê, talvez uma carica de garrafa de laranjada para fazer um
ciclista, talvez um cromo ainda bom de jogador da bola para a caderneta, só
recordo o ter achado, não o achado em si, ou em mim, só o ter feito um
descobrimento, a emoção intensa (chamam-lhe “adrenalina”, hoje em dia), o
sapato direito garimpando aquela fortuna incalculável, que, de facto, ficou por calcular.
A
Senhora então assim para mim:
–
É mesmo essa a sua Primeira?
Ardil.
Tento esconder o gato sem mostrar o rabo. Em vão: ela sabe do ofício.
Eu
assim para ela:
–
Até que ponto, Doutora, são as recordações deveras factuais? Quanta ficção
maquilhada pelo desejo as não emboneca? Quanto real é/há nelas? Quão sincero
(nos) é o Passado (ou nós sinceros para com ele)? Quanto tem ele de fabricação?
Ela
sossega-me:
–
As recordações têm sempre algo de verdadeiro, de histórico, na origem. A essa
verdade antiga costuma associar-se, inconscientemente embora, o contexto, a
época, o ouvido, o falado, o que os mais Velhos disseram, o que a Criança
apre(e)nde(u).
E
insiste:
–
É mesmo essa a sua Primeira
Recordação?
Decido
abrir o jogo:
–
É. Mas há uma Segunda
que é Primeira também. Ex-æquo, diria eu. E digo.
E
ela:
–
Conte-ma, por favor.
E
eu:
–
Tem de ser 1967 ou 1968, no máximo. Não pode ser mais perto no Tempo. Nem mais
longe – eu sou dos de ’64. Ainda não ando na Escola. É na terra do meu Pai, não
naquela onde moramos, que é a da minha Mãe. Levavam então as crianças a essas
coisas fúnebres. Acho que ainda levam. De repente (é uma espécie de clarão na
mente), num adro (árduo), vejo o Caixão. Já saiu da Igreja, ainda não chegou ao
Cemitério. Terra seca. Está completamente só, o Morto. Como deve ser, s(up)onho
eu agora. O Rosto é um lenço sobre o rosto. Brisa nenhuma. O Rosto-rosto não se
mexe. Os homens pousaram-no ali. Talvez para descansarem um pouco. Os homens
desapareceram. O séquito desapareceu. O Sol a pino. A pique. Absolutamente Só.
Absolutamente Sol. Absolutamente ninguém em torno do esquife. Não me vejo a mim
mesmo – sou Aquele-que-Olha.
A
Doutora:
–
De quem era o funeral?
Eu:
–
Era de um homem já grande quando o meu Pai ainda era menino.
A
Senhora:
–
Muito calor?
Eu:
–
Insuportável. Aquela luz irrespirável à García Márquez, sabe a Senhora? O negro
acérrimo do ataúde. Ninguém à volta daquela Caixa-Preta. A força do calor
açulada pela força do Ninguém-à-Volta, pela força do Nada-por-Todo-o-Lado. Nem
o meu Pai à vista. Até hoje.
A
Senhora:
–
Há estudos que apontam no sentido de um maior pendor para a sobrevivência no
caso das pessoas cujas primeiras recordações estão associadas à alegria, ao
prazer, a sentimentos bons como a gratidão, a surpresa agradável etc. O senhor
tem duas Primeiras.
Qual
delas escolhe?
E
eu:
–
Mas eu posso escolher?
Então
a Senhora assim:
–
Pode. Pode sempre escolher. Fixe isso: pode escolher sempre. Creia nisso. Mas é
bom que tenha sido franco com o acréscimo da “Segunda-também-Primeira”.
E
eu:
–
Então escolho a primeira-Primeira.
A do Achado.
Então
a Senhora assim:
–
Como, ou o quê, são hoje para si os dias de muito calor?
Eu:
–
Acho que compreendo a pergunta. São mortíferos e mortais e sozinhos. Olhe a Senhora
que eu gosto de praia no Verão. Mas prefiro-a de Inverno. Ao Estio, prefiro de
longe o Outono temperado. Até a Invernosa mais álgida lhe prefiro.
A
Senhora:
–
Compreender é bom. Ajuda a escolher. Não muda o Passado. Mas muda qualquer
coisa (para) hoje.
Eu:
–
Mas nunca saberei o que estava sob o papel/cartão, o que achei, o que me
alegrou tanto.
A
Senhora:
–
Escolha o tesouro
que quiser. Mesmo que esteja calor a mais.
Consulta
acabada, sozinho na paragem de autocarros. Sol forte, implacável, daquele de
enegrecer rosas. Mas, perto, há uma orla de sombra viva: como uma gaze fresca
atirada pela Mãe. Acolho-me a ela. O autocarro vem a horas. E, uma vez na vida
ao menos, eu também.
Obrigado,
minha Senhora.
Obrigado,
acho eu.
Ou
escolho.
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