Gosto de datas. As efemérides proporcionam-me a ilusão de
o Tempo poder ser detido, como Aldous Huxley queria, Marcel Proust conseguiu e
Ricardo Salgado ainda não foi.
Esta edição do nosso/Vosso Jornal sai a um 23 de Abril.
Mas não – não é sobre certa Revolução com Cravos (que depressa passou para o
domínio de cravas) que aproveito a boleia da data. Afinal, O RIBATEJO
é semanário, pelo que a 25 de Abril próximo é de fresca legibilidade ainda. Mas
não. É mesmo de 23 de Abril que quero falar-vos alguma coisita esta semana. Na
verdade, de dois 23 de Abril.
O primeiro deles, despacho-o num instantinho: o dito dia
de 1616 é tido como o da mais provável data de falecimento de um colosso da
Literatura mundial: William Shakespeare, na sua terra natal de
Stratford-on-Avon, Inglaterra, onde nascera em 1564. Para muitos, outro gigante
literário morreu precisamente no mesmo dia e no mesmo ano: Miguel de Cervantes,
o genial criador do Quijote. Mas a datação é polémica. A Wikipédia (que
nem sempre é fonte segura deste tipo de águas, refere isto:
“É bem notória a coincidência das datas de morte de dois
dos grandes escritores da humanidade, Cervantes e William Shakespeare, ambos
com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar que o
Calendário gregoriano já era utilizado em Castela desde o século XVI, enquanto
que na Inglaterra a sua adopção somente ocorreu em 1751. Daí que,na realidade,
William Shakespeare faleceu dez dias depois de Miguel de Cervantes.”
Deixemo-nos todavia destas afinal ninharias de cronómanos
como eu. É do outro 23 de Abril que quero conversar: o de 1936. Porquê?
Por isto: é a data oficial da criação, pelo Estado (dito) Novo, na Ilha de
Santiago, em Cabo Verde, do Campo de Concentração do Tarrafal. O Morcego
Eunuco, vulgo Oliveira Salazar, antecipou-se no horror ao próprio Hitler.
Já lá estive. Digo: fisicamente, no Tarrafal. Foi em
Julho de 1997.Era eu então formador do CENJOR / Centro Protocolar de Formação
Profissional para Jornalista, com sede em Lisboa. Um protocolo entre o nosso Governo de
então e o seu homólogo de Cabo Verde lá me levou. Missão: seleccionar uma
vintena de candidatos íncolas a jornalistas profissionais e leccionar o módulo
de Língua Portuguesa no âmbito da Escrita Jornalística. O trabalho era doce, o
pagamento à hora era dulcíssimo, as pessoas de lá também. Foram (e são) três
semanas da minha vida para guardar no baú bom da parte melhor do sótão mental.
Menos aquele domingo.
Certo domingo, gente ministerial que me assessorava a
função e a logística dela, levou-me a fazer um périplo pela ilha em que se
situa a capital de Cabo Verde: a Cidade da Praia. Quiseram saber se eu desejava
visitar o famigerado Campo-Prisão. Respondi que sim. Corri-o todo. Em 1997,
estava praticamente intacto: a solidão entenebrecia-o ainda, ainda o exílio
apodrecia até a luz total do sol cabo-verdiano, ainda os fantasmas dos
prisioneiros espectravam os visitantes. Entrei em todas as celas de progressiva
escuridão. Maldisse-me ser português por portugueses terem sido os mandadores
daquele imoral e amoral mural de lento extermínio. E como portugueses nele e
dele foram vítimas. Li as palavras, os nomes, li o que não deveria nunca ter
tido papel onde tal horror fosse escrito.
Saí de lá de garganta cega em nó. Os meus guias aperceberam-se
do meu quebranto e respeitaram a inelutabilidade do meu luto.
Não era tanto a ira anacrónica pelos torcionários que me
sufocava a respiração cardíaca. Era mais a vergonha da minha portugalidade.
Foi há 79 anos, à data da saída deste Jornal. Para muita
gente dotada de memória (que por alguma razão rima com História), foi ontem. E
pode ser amanhã. Não sei, aliás, se o não é já.
Os muros são outros, é certo. São transparentes: este
tijolo é o desemprego, esta cela é o tribunal fechado, este refeitório é a
sopa-dos-pobres, este pátio é o da escola encerrada, este portão é por onde se
entrava para o extinto posto de saúde. Mas os sicários estão vivos. E nunca as
vítimas de que se alimentam lhes escasseiam. Se a “coisa” lá não vai pela
tortura do sono ou pelo arrancar das unhas, vai pela corrupção bancária, vai
pela descredibilização total do regime alegadamente democrático-constitucional,
vai pela plenipotência dos super-escritórios de super-advogados onde são
urdidas as manigâncias que absolvem o corruptor e metem na prisão o ladrão de
uma lata de atum nas hipermercearias dos belmiros. Vai pelo “rating”, que
é como em anglo-economês se designa a actividade dos ratos.
Não. O Tarrafal não está fechado. Chama-se Presente e é
Europeu.
As celas de sucessivas trevas estão aí: chamam-se um-dia-de-cada-vez-amanhã-não-sei.
23 de Abril e coiso e Shakespeare, dizia-vos eu, não
era? Mas o “Otelo” do genial dramaturgo
inglês era de outra qualidade. Por falar nisso, ser não ser(mos) é que é a questão. Agora – quem
queremos ser? É essa a questão. A única questão.
Já agora, depois de amanhã continua a ser Abril. Calha a 25. A data lembra-me qualquer
coisa, hei-de ver se ainda me lembro de quê antes de acabar a crónica.
Sem comentários:
Enviar um comentário