Crónica
Rosário Breve - Palavras cruzadas por Daniel Abrunheiro
“Uma vida em segunda-mão não tenta ninguém.”
Di-lo
Katharina von Bülow em A Alemanha entre
Pais e Filhos, tradução que as Edições
Cotovia publicaram em 1988 entre e para nós.
Na
banca ao lado daquela miniFeira do Livro, por os idos do Março passado,
encontrei também o José Cardoso Pires de Dispersos
1 – Literatura, que a Dom Quixote nos
propôs em Maio de 2005. A páginas 255 desse caderno póstumo, recolho um ditado
bretão que o Autor de O Delfim achou
por bem nele incluir: “Até aos vinte
anos, o homem tem a cara que Deus lhe deu, daí em diante aquela que merece.”
Diz
então Katharina:
–
Zé, olha que ‘uma vida com sentido não é
a sobrevivência pura e simples. Acomodar-se às coisas é renunciar.’
E
ele assim para ela:
–
A quem o dizes, Katy, a quem o dizes!
‘O
repouso do guerreiro mata o guerreiro, é essa a sua ingenuidade.’ Mas olha que
‘a felicidade individual requer planificações políticas amplas e ambiciosas. O
burocrata, o carreirista da governação ou o legislador provinciano têm pavor
aos projectos vastos’.
E
ela assim para ele:
–
Verdade, meu amigo. ‘O país só tem
sentido se lá possuirmos uma casa. E uma casa só tem sentido se abrigar uma
família.’
Zé:
–
Katy, a propósito destas coisas inteligentes
que aqui cruzamos para gáudio de um cronistazito de comarca, ouviste dizer que
pertinho de aqui onde estamos, ali para riba do Tejo, lixaram o Melão?
Katy:
–
Não me digas! O Tó? Fizeram-lhe isso?
Zé:
–
Fizeram.
Katy:
–
Trinta e um, então.
Zé:
–
31? Isso é nome de fadinho, cá pelas
minhas bandas. Mas q’ais 31?
Katy:
–
O Tó mais os 30 que a ViverSantarém vai
despedir.
Zé:
–
Essa ’tá boazinha, sim senhora. A menina
ajeita-se a fazer descontas, já vi.
Katy:
–
Que fará ele agora?
Zé:
–
Com aquele nome, sempre é gajo para
arranjar emprego em Almeirim.
Katy:
–
Não sejas mauzinho. Estávamos a conversar
tão bem lá em cima, com datas de edição e páginas e tudo.
Zé:
–
Pronto, a graçola sempre nos serve de
escape ao facto de a política ser a ‘manobra do dia-a-dia, solução a reboque
dos acontecimentos, que é, em termos de administração, o caminho tradicional
dos providencialistas e dos caciques domésticos’.
Katy:
–
‘Ontem pertencíamos a uma nação, hoje
somos caça.’ Acho mesmo isto, Zé: ‘Nós somos caça, acasos, heranças absurdas.’
Zé:
–
Isso está bem posto, rapariga. ‘O homem
contemporâneo que se julga integrado numa idade de progresso (…), pobre dele,
vive paredes-meias com a contradição elementar e o anacronismo.’ É como tu
mesma disseste, menina: ‘De eleitores cobardes, democratas dóceis’…
Katy:
–
Sabes tu? Tenho por vezes ‘a impressão de
andar ao lado dos meus passos’…
Zé:
–
Também me acontecia muito, mas agora
menos, que estou morto.
Katy:
–
Não de todo, Zé, de todo não: alguém nos
faz ’inda falar. Nos faz ainda ser, portanto.
Zé:
–
Valha-nos isso. Somos o que merecemos –
como os bretões. E já não temos vinte anos.
Katy:
–
Tudo bem, desde que vivamos em
primeira-mão.
Zé:
–
Não digas isso assim, que rima com Melão.
Sem comentários:
Enviar um comentário