quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crónica - Rosário Breve Caderneta da fome por Daniel Abrunheiro

Diz que há por aí famílias com fome.
Excelente janela-de-oportunidade para exercício do catolicismo esmoler. Nada beatifica mais do que uma sopinha-dos-pobres. Unto de gozo purinho, sermos todos Madres, todos Teresas, de Calcutá todos. Andarmos todos por aí a distribuir sacos plásticos para a canonização em vida da Jonet. Isso – e no intervalo das esmolinhas coleccionarmos presépios piíssimos como a Maria do Coiso.
Temos quase tantos anos de “democracia” quantos suportámos de fascismo legionário: oito anos são um sopro de fósforo. E no entanto. Mas todavia porém.
Que a Direita babe homilias coitadinhistas de templária grã-cruzada, nada me surpreende: é subgente apenas, apenas antónima da humanidade chã dos dias reais. Mas certa Esguelha que por aí anda, histriónica, calendária, instalada, acomodada, papagueadora de grândolas por calendário e casseteficadora de boas-intenções que povoam o inferno – essa gente nem me diz coisa boa, nem este Jornal assina sequer, não vá o saber o Edil que ainda somos uns mil.
Ponho-me na pele do professor Manuel Sousa, protagonista involuntário, ou talvez não, do Editorial que abriu a edição passada deste mesmo semanário. Por via da caderneta, sinalizou o docente à mãe que o filho era desinteressado, alheado, cabeceador de estranho sono. Vai-se a ver e a saber, era a fome. Era da fome, afinal.
Uma pessoa lê isto – e fica com um calhau onde era suposta a garganta. No país que hesita entre a “saída limpa” e o “programa cautelar”. No país do indizível Portas, esse indefectível devoto dos virginais pastorinhos e das epifanias a néon em azinheiras anti-republicanas. No país da Albuquerque, essa Barbie cuja brincadeira favorita é destruir casinhas. No país do pavor aos que “comem criancinhas ao pequeno-almoço” e do louvor aos que “comem o pequeno-almoço às criancinhas”. No país do valha-te-deus-que-o-diabo-não-se-distrai. No país onde parece terem-se tornado obrigatórias a estupidificação massiva dos estudantes e o genocídio imbecil das praxes.
Aqui perto de onde redijo estas linhas amargas, morreu atropelada uma velhota que, de burro e carroça, andava às couves. O animal também morreu na colisão. Mais perto da minha mesa, um jovem titila o seu tablet modernaço. Coexistências do caraças: o I de XXI aparecer a meio dos XX. Entretanto, bufarinheiros de Mercedes pato-braveiam jogatanas municipais, manilhas, tout-venants, esquemas-negociatas-almoçaradas de favor, empenho, cunha & falcatrua. O Benfica joga em Turim a sua Europa de alienação de massas. A Jonet quer saber o número de telemóvel do professor Manuel Sousa, em cuja caderneta inscrevo esta crónica por procuração da amargura.
E no espeto da tumba santacombadense, o Salazar, esse santo estéril, esse pesadelo de que se não acorda, roda voltas de gozo o mais apostólico, o mais sacro, o mais pró-famélico, o mais eu-bem-vos-avisei-não-foi?

Foi.

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