Tu, leitor
desalmado meu, ris-te, mas olha que a metáfora cefalópode é triste. Esta que te
escrevo é crónica feita de pé desde as sete da manhã na fila do Centro de
(des)Emprego cá da parvónia. Já daí vês que mais me corrói a bílis do que me
rói o gozo. Se comigo recuares em espírito datado aos tempo do famigerado
Cavaquistão (quando os dias eram loureiros e de artes limas), saberás que foi
então que, por superior desmando e a córneo imperativo da vaca estúpida de
Bruxelas, o então primeiro-ministro assinou de cruz a destruição, por abate, da
frota pesqueira e da safra agrícola íncolas. Nem o Tenreiro da Outra Senhora
nem o mefistotelismo alucinado do Barreto desta se atreveram a tanto, ó leitor!
Perdoar-me-ás ou não (sinceramente, também não quero saber se sim ou sopas),
mas não consigo ser compassivo nem deixar de cuspir no fósforo que me queima a
alma e o bolsilho dos cêntimos. Em qualquer ajuntamento folclórico, perante um
vulgar grupo de cavaquinhos, nunca deixo de sentir que aquilo é mas é um grupo
de bêpêénezinhos. Se eu mandasse, a Presidência da República seria entregue ao
homem-do-fraque, não a um homem fraco, não a cúmplices acatadores e persignados
e genuflectidos do ataque mais intolerável aos direitos mais básicos e mais
inalienáveis da dignidade de todo um povo. Se fosse para viver de joelhos, eu
seria guarda-redes de hóquei em patins, não sei se ‘tás a ver…
Sim, se eu
mandasse, poria o BPN todo na prisão sem que a vaca tossisse ou ficasse feita
ao bife. MECA é o que o chamo ao duplo mandato presidencial: Mumificação Em
Curso Acelerado de uma responsabilidade que era suposta como de salvaguarda da
Constituição, que é (ou deveria ser) Lei Fundamental por ser lei e por ser
fundamental. Mandando eu, o Mexia da EDP teria de vir a Santarém explicar ao
pessoal a estranha dendroclastia precoce do município de local, que abate
árvores em vez das devidas moitas e das endividadas flores. Chiça, que a
indignidade também cansa, pá!
Ouve-me: eu sei
que não é possível carochinhar a qualquer actual ou pretérito desgovernante a
história da Branca de Neve e os Sete Anões sem que ele, ao espelho, queira
saber onde estão os outros seis. O velho Cícero bem prègou no deserto
pré-bíblico quando assentou, com admirabilíssima concisão lapidar, que “não há honra onde não há justiça”. O
ricto mandibular de Cavaco não sinaliza suavidades analgésicas de ter lido o
anticatilinário orador romano, bem o sei eu. (E sim, señor Presidente, os Cantos
de Os Lusíadas perfazem a dezena.) Pois.
Mas é que para a reforma dele trabalhou mais de meio século febril e fabril o
meu senhor e saudoso Pai, a quem, ao cabo de uma vida de honesto e perfumado
suor, escarraram no rosto a esmola de 27 contos até que a morte o tratou por
tu, pá.
A 21 de Abril de
1977, leitor, ficas a saber que, em palestra na SEDES, António José Saraiva depunha
que “no caso português, para dar um
exemplo, uma política de austeridade só poderia ter como resultado uma
diminuição dos empregos e o desaparecimento de empresas.” 1977, ó leitor!
Há 36 anos que o caminho é claro como água lavada. Na mesma data e na ocasião
mesma, o mesmo AJS assentava com todo o acerto que “a sociedade de mercado é incompatível com quaisquer valores, excepto
um: o valor monetário. Tudo o que o favorece é bom, tudo o que o contraria é
mau.” Pois é, pá, pois é, povinho. E de que nos vale que, oito dias depois
(a 29/4/77, no velho Diário Popular),
o co-autor (com o grande Óscar Lopes) da melhor História da Literatura Portuguesa invocasse a “máxima kantiana segundo a qual todo o homem deve ser tratado como
sujeito e nunca como objecto por qualquer outro homem”? Diz-me tu, ó
leitor, que também és sujeito e não é aqui que hás-de ser tratado como objecto.
Olha que até uma figura oblíqua do Bloco de Esguelha
(Daniel Oliveira) deu na mouche quando,
lapidar e concisamente também, se referiu ao inenarrável “ministro” da
“Economia” como figura “que se comporta
como uma criança num velório”.
O trocadilho
supra da lula e do choco, leitor, merecerá de ti, talvez, que passes o jornal
ao amigo que a teu lado bebe café e resmunga indignações de café também.
Talvez. Mas repara no quanto chove lá fora para comigo concluíres, em irmanado
acerto, que a diferença entre o mau tempo, de um lado, e o desPresidente e o desGoverno,
do outro – é que na verdade só o mau tempo mete respeito.
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