quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Aguarela portuguesa com brinquedo verde - Rosário Breve por Daniel Abrunheiro


O vento faz-se sentir, altera (redispõe) a paleta dos elementos mundiais, entre os quais ele mesmo.

Uma senhora com duas crianças, uma já andarilha e falante (Mariana), outra que é Eduardo e que de carrinho-rodas é trazido e levado. O Eduardo só crocita, por enquanto. Passa-se isto numa praça a que a manhã estendeu a todo o diâmetro o linho do sol. O Eduardo atira fora um pato de plástico verde. Sente-se manietado, quer livrar-se da tira de lona que lhe cinge diagonal o peito brevíssimo. A Mariana lambe em delícia o creme de um pastel maciço que o açúcar polvilha de átomos de luz branca – como acontece ao firmamento nocturno cada Verão, quando a suprema tela, isenta de nuvens, logra acesso óptico à poalha diamantina em miríade esterlina. Em poucas manhãs, será Ano Novo. A mãe não é já criança, não todavia velha já. É uma Isabel como tantas isabéis de por aí: um vaso de que brotam flores pueris.

 

Em o entretanto de tudo isto, o vento vai mudando as cores à aguarela: encrespa-se de castanho o verde rio, azulam-se as árvores de sentinela ao céu agora âmbar, trotam, muito gendarmes, os cachorros vadios ora tocados a cor-de-rosa e a amarelo-torrado. Quase álgido, o ar movediço torna a respiração um maquinismo benigno. Não é difícil nem precário entrever as longínquas praias desertas: estendais de ouro comum ao giz volante das aves marinhas, às eróticas dunas configuradoras de ancas feminis, e às crespas fragas paredando o que é terra em desfeita de mar.

Mais perto do lápis, Isabel, Mariana e Eduardo terminam sem estrépito a vinda à pastelaria. Saem os três da presente dramaturgia. É quase meio-dia.

A uma mesa de tampo azul-ferrete, um rapaz de quase cinquenta anos urde sonetos difíceis e ilegíveis. Tem no bornal publicações amarelecidas de outros sonetos de outros rapazes a outros ferretes azulíneos postos. Este não comeu bolo. O pastel que lambe – é o da Língua Portuguesa, essa viva confeitaria de tantos açúcares. Ao primeiro dos dois tercetos (onde se começa dando o litote poente da composição quatordécima, como é sabido), distrai-o a volumetria lípida de uma matrona brasileira que faz do próprio telemóvel um altifalante em tejadilho de carrinha de circo. Adiposa como uma bochecha esmurrada, não parece sentir o envolvente-vento-que-vem-vindo nem pertencer ao mesmo mundo circunspecto do Eduardo, cuja ex-mesa aliás ocupa. Atabafou-se a tropical willendorf de flanelas moles como véus de lamas sobrepostas. É de olhos bonitos e boca feia, orbes mamários de trémula gelatina em bandeja de contralto-castafiore, mãos aduncas de quem sofre não o pão mas o ganhá-lo.

Dez minutos mal contados pós-meio-dia, ergue-se o sonetista. Lesto como se não suporia, acocora-se à base do pilar da galeria. Cata do chão certo pato verde que dele foi há meio século quase, quando a Isabel dele era viva e as pastelarias eram mais raras, mas nem por isso menos as aguarelas que o muito crocitar entretanto lhe/vos veio (a)ventar.

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