quarta-feira, 7 de junho de 2017

Crónica Rosário Breve Mau tempo no curral por Daniel Abrunheiro


1. O curral me(r)diático nacional é sobrepovoado de “homens da embalagem prateada” e de “rapazes do gongo dourado”. Por assim dizer. São reses pífias, gado repugnante a toda a decência cívica e impermeável ao atavio ético das poucas pessoas-de-bem que ainda por aí haja. A corrupção à portuguesa tinha de ter laivos afrobrasileiros. E tem. O colonialismo não acabou – passou mas foi a ser de lá para cá também, relegando-nos o ultramar ao estatuto de província que nunca deixámos afinal de ser. Mas calma. Nem era disto que queria falar-vos. De Agricultura é que sim.
2. De Agricultura”? Sim. Mesmo? Mesmo. Explicando: tenho andado a ler o Virgílio das Bucólicas, primeiro, e das Geórgicas, logo a seguir. Delícias de há dois mil anos e uns trocos. Sabeis bem que me refiro ao mesmo grande Poeta da épica Eneida. Claro, esse mesmo que amou em Teócrito e Hesíodo o que Dante e Camões amaram nele: o verso perfeito, o diapasão silábico, o frescor pitoresco e a rendida gratidão à Natura-Mater. Esse todo. Mas adiante, que já semelho sacristão sonhando com o vinho eucarístico que sobrou do santo sacrifício.
3. E a Agricultura? Que raio a ver com leiturices clássicas e/ou corrupções pindéricas? Calma. Ter, tem. Tem e cá vai: tanto nas Bucólicas como nas Geórgicas (sobretudo nestas derradeiras), elogia-se vivamente o desprendimento filosófico e a serenidade existencial resultantes da sã interacção, pelo trabalho como pela fruição, com o campo, a vida nele, a sabedoria da observação dos índices meteorológico-sazonais (as estações do ano, pronto), o cultivo de tudo: árvores, solos, sabores e aromas, a maravilha cíclica e ritual da dialéctica sementeira-colheira-poda-vindima. Até o omnipotente instintozinho sexual que faz o gado parecer-se com a gente. Ou nós com ele. E as abelhinhas. Não esquecer as abelhinhas.
4. Sim. OK. Porreirinho. Mas – e portanto? Aquilo da Agricultura o quê? O portanto está em que eu, uma destas manhãs, cedo como se nascesse, me achei achando, aos pés de um contentor juncado, um suplemento em papel daquela coisa digital a que a Direita de cá da parvónia chama Observador. Como sempre faço, colhi do chão o lixo. Preparava-me para o esquecer no odre municipal quando, de viés, o título me cativou: Dicionário dos Grandes Negócios, panfleto com textos de um Luís Rosa e ilustrações de um Henrique Monteiro. Já o não sacrifiquei à voragem benigna da reciclagem. Guardei-o no bornal, cheguei à pastelaria, botei café a ferver para a entranha e fumei como quem nunca há-de morrer a tossir. Tinha ante mim um dilema aparentemente fácil de solver: Virgílio ou o pasquinzito das escandaleiras inocentes-até-trânsito-em-julgado? Fraco, vim por estas. Virgílio, sendo eterno, podia bem esperar um bocadito. Lixei-me. Passei o mor e o melhor da matina a tresler, primeiro, e a sublinhar a fluorescente, depois, o coiso achado no chão. Entradas alfabéticas: Azul (Saco), Bataglia (Hélder), Bava (Zeinal), Espírito Santo (Família), Granadeiro (Henrique), Loureiro (Dias), Salgado (Ricardo), Silva (Carlos Santos), Sócrates (José), Veiga (José) e Vicente (Manuel). [Nota relevantíssima: este rol nada tem a ver com as “embalagens prateadas” nem com os “gongos dourados” do paleio figurado do ponto 1. desta crónica. Cuidado com isso, que não tenho dinheiro para prestidigitadores da vara.] Só que, assim de fulminante repente qual trombose terminal, zás! e zinga! – a Agricultura outra vez.
5. Sim. Ela toda. Foi quando lia o item relativo ao Granadeiro. O Granadeiro, sim, que terá preferido enriquecer a ser Henrique. Foi na pág.ª 7: […] Ricardo Salgado (…) classificou Henrique Granadeiro como um dos grandes sábios portugueses na área agrícola.” É que nem para mais nem por menos: Grande. Sábio. E agrícola. Chiça! Quem? O Henrique? Parece que sim. Parece que sumo mestre de herdades de comportas, fábricas de arrozes, herdades vinícolas, marcas de vinhos capazes de vales de ricos homens e de tapadas de barões. Tudo coisas, hoje, de arresto judicial, infelizmente, mas parece que antes de cornucópica, ou pandórica, maravilha. Fiquei de boca artilhada na quarta vogal. Então e o meu Virgílio ganadeiro ao pé deste Granadeiro épico também? Que desgraçado cotejo me o decepava ali cerce? Calma. Lembrei-me a tempíssimo do resgate. Bucólica Primeira, ali onde, ao pastor Títiro, o colega Melibeu fala pela vez segunda: “Não te invejo, me espanto, pois que tudo/pelo campo é desordem. De que modo!/Eu próprio, já doente, a estas cabras/empurro para a frente e à que tu vês/como custa puxá-la, pois que gémeos/pariu por uma moita e aos dois coitados/os teve de deixar em pedregulhos,/ó perdida esperança do rebanho!”.

6. Sim. Perdida. Digo: a esperança. O rebanho soma, que se não some, e segue, que de borla curral lhe damos. Até trânsito em (jul)gado. Diz a abelhinha.

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