Sim,
verdade: esta é a crónica n.º 500 da série Rosário
Breve. Parece mentira. Quinhentas semanas aqui. Se é um privilégio não
escrever para a gaveta, redobrado privilégio é fazê-lo na e para a última
página deste Jornal. Sinto profundamente isto que aqui deixo dito. Faz em Maio
próximo dez anos que aqui dei por publicada a primeira coluna. Estranha coisa:
uma década esfumada assim, assim como se nada fosse. No entanto, cá cantam, nos
ossos e no gasto de tantos lápis, esses dez anos. É com alguma perplexidade que
conto cinzas. Quinhentos prumos de fumo, quinhentas miradas, quinhentos
grandes-tudos & quinhentos pequenos-nadas. Adiante, todavia.
Adiante
neste sentido: por felicíssima coincidência, esta crónica n.º 500 alinha-se em perfeita
esquadria com uma outra efeméride que, essa sim, ilumina solarmente a minha
vida – segunda-feira próxima, 10 de Abril, é o centenário do nascimento do
senhor meu Pai. 500x100, portanto. Esta crónica só poderia ser deposta a seus
pés. Mais do que um bom homem, o meu Pai foi um homem bom. A alteração do lugar do adjectivo diz (quási) tudo dele.
Daniel dos Santos Abrunheiro nasceu a 10 de Abril de 1917, morrendo a 24 de
Abril de 1994. Se em sorte me couber o total de anos que foi o dele, tenho
’inda mais 24 para fazer sombra pelo chão, honrando-lhe o nome até quando, à
imitação dele, estiver dormindo.
Encerro com
um texto que lhe dediquei há uns anos já. Antes, todavia, deixo este recado ao
meu Leitor: sou-te profundamente grato – sim, a ti, que tanto lápis me fazes
gastar em prol de uma gaveta que não preciso de abrir.
Tesouro
Vi os olhos do meu pai na cara de um homem que
passava na rua.
Durou pouco, o regresso desse olhar de cão
batido.
O homem olhou-me com um olhar que já era o
dele.
Fiquei parado na rua.
Fazia sol.
O meu destino, que na altura era ir ao
multibanco, tinha perdido o sentido, como todos os destinos.
Os olhos do meu pai, caramba.
Estes anos todos sem ele, e ali estavam os
olhos.
Preciso sempre de uma explicação.
Preciso sempre de saber tudo.
Continuei parado ao sol, à espera de perceber.
Não durou muito, a explicação.
Eu tinha parado diante de uma montra espelhada.
O sol devolvia-me todo um corpo de vidro e luz
parecido comigo.
Olhei-me os sapatos, os joelhos, a aba do
casaco, a gravata, a cara.
Nessa cara alheia, lá estava outra vez o olhar
do meu pai.
Nunca mais volto ao multibanco.
Nunca mais vou precisar de dinheiro.
Um tesouro olha por mim.
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