quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Crónica Rosário Breve - Palavreado esti(o)utonal (I & II) por Daniel Abrunheiro


I
História Lenta com Hortênsia mais Dois Azúis

Aconteceu-me há momentos uma coisa que vos quero contar.
Não vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou só contar.
Por volta das seis da tarde, saí para descansar os olhos.
Subindo ia eu pelo lado esquerdo da avenida, o lado do Parque.
Do lado oposto, vinha descendo uma mulher jovem.
Vestia uma blusa azul-celeste.
Vinha longe.
Parei, voltei-me para o Parque e tirei algumas fotografias verbais ao chão vegetal.
A luz era baça, outoniça (ainda o é, posto que escrevo vinte minutos depois).
Quando me preparava para colher a imagem de certa hortênsia azul que ali vigora em solidão, ouvi nas minhas costas a voz:

Boa tarde!

Ela tinha parado no passeio dela para me dizer isto.
Virei a cabeça e mergulhei naqueles totais olhos azúis (como a blusa dela e como a minha hortênsia).
Eu devolvi-lhe a boa-tarde e levantei a mão em saudação.
Nunca a tinha visto por aqui.
É uma rapariga doente.
Tudo dela emanava a outra dimensão, a inexpugnável cosmogonia da doença mental.
Ela deu-se por satisfeita, prosseguiu a descida nos seus passinhos chineses, Ariadne enrolando por si o fio invisível da vida dela.
Eu fotografei a hortênsia e subi até vós.
Eu e ela ficámos, por assim dizer, quites:
nada posso fazer quanto à loucura dela,
ela nada pode fazer pela minha.

II
Fernando António Nogueira

Uma palavra pode ser uma pessoa.
Há uma idade-maçã em cada pessoa.
De novo, e descaradamente, rói a infância-maçã a velha pessoa.
A velhice é o bicho adentro a maçã-pessoa.
A pública noite vence a particular de cada pessoa.
Vence-a pessoa a pessoa.
De mínimas vitórias é feita a Grande Derrota da pessoa.
A minha noite não é a de todos – é a da minha pessoa.
Vou falar-vos da minha mais recente noite em pessoa.
Não vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou só contar:

Sucedia ser pelo entardenoitecer. Sob a latada adoçada pelo Estio e acossada já pelas vespazzzzzzângonas do açúcar verde-âmbar-mel, eu ventilava-me em aura de buda vestido. Da mata derredor, os últimos bichos urdiam deles, e do dia, a música derradeira, essa que antecede o sono – ou o passamento – ou o pensamento.
A hora à aurora avessa adentrava-me a mente à maneira de um nihil obstat o mais generoso. Por conseguinte, a vida mesma coçava-me e acossava-me, vespa ela também, o corpo escrevente à guisa de um imprimatur potest o mais facundo.
Escutei o chiar do carro-de-bois do meu vizinho Nando-Tó Nogueira, cuja xiloacústica tracejava o vidro do ar em limalhas de ponta-de-diamante. Sentia em perfeição a feição da gravidez fecunda e jucunda das macieiras (Há uma idade-maçã em cada pessoa etc.)
Nenhum incêndio queimav’ardia o Bosque-de-Existir-e-Pensar-no-P’ra-Quê-Disso.
Era o sossego, era a açucena, era a cegarrega, a doçura sensível, a seiva sedosa, a seda & a sede saciada. Era a tal hortênsia. Sentia-me bem, a ponto de me não causar mal a consciência de haver nascido sem que opinião me houvesse sido pedida.
Foi então que me chegou a Palavra.

Em Pessoa.

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