sábado, 13 de maio de 2017

Rosário Breve A gente B.-B. ê-se por aí por Daniel Abrunheiro


Desenho de Onofre Varela

1 Maio também serve para desaparições pouco místicas. Terça-feira, 9 do corrente, foi a vez da de Baptista-Bastos, ao cabo de 83 anos de nascido. Foi um cultor da Língua de subido mérito. Gostava de jornais bem escritos e de livros bem lidos. Era pessoa e personagem. Conhecia milhares de histórias, foi protagonista de milhentas ele próprio. Correu todas as redacções, percorreu todas as ruas de uma Lisboa que, sua de nela nascer & de em ela morrer, poucos terão conhecido tão bem. Deixa admiradores, indiferentes e rancorosos. A mim, deixa-me vontade e pretexto para mansa releitura de alguma da sua literatura, que noutra idade abordei talvez sem a atenção mais proveitosa. Penso que o ângulo do obituário pode ser mais justo se, em vez de “Morreu Baptista-Bastos”, assentarmos que – B.-B. viveu. Ora, como é sabido, não se pode dizer o mesmo de toda a gente.
2 Não se pode dizer o mesmo de toda a gente porque há mortos-em-vida que por aí andam a roer broa muito mal empregadinha em tais dentuças. Ocupam os poleiros e mamam as mordomias que lhes presta a populaça pobrete & alegrete da nossa espécie de fatalidade. Parasitam todas as áreas da sociedade. Infestam, da mesma, todas as secções produtivas – volvendo-as improdutivas. Política, desporto, ex-cultura, culinária, turismo, jornalixo, hidráulica, estiva, transportes, câmaras, clubes de caça & pesca, lares da última idade, bombeiros, saúde, correios, eléctricas, esplanadas – a tudo esterilizam. E reproduzem-se muito, gerando criancinhas estupidificadas pela electrónica amestradora deste século em que a incomunicação pessoal está na razão inversa da profusão de máquinas de bolçar bitaites. Não sofro dúvida: o nosso é um tempo sem eira, sem beira e sem ramo de figueira. Mas quê? Chateio-me muito com isso? Cada vez menos. Sobrevivo e deixo sobreviver. Reciclo o dia antes que o ontem se faça tarde. Ainda agora.
3 Ainda agora, na esplanada de mesas daquele amarelo da publicidade ao chá de palhinha, estava o maralhal muito sossegado a estiolar à torreira de um sol bruto como as derrocadas mineiras. Nisto, uma inquietude assolou a assembleia de desirmanados. Uma ansiedade esquisita, um latejar de próstatas, uma ânsia de ganir à Lua vespertina. A causa? Uma mulher. Apareceu-nos ali sem azinheira nem aviso. De vestido justo a ponto de segunda pele, era um clarão de champanhe. Manava uma fragrância de peixe fresco alimentado a fruta e a leite, decerto por rabejar de cintura qual sereia profissional. Esfíngica, muda, impositiva & incómoda tipo mulher-do-fraque, fez-nos ranger a prótese dentária como se de repente tivéssemos começado todos a sorver esferovite. O B.-B. não lhe perdoaria. Nós perdoámos-lhe. Demorou-se pouco, ficando-nos portanto para sempre. Abençoada posta não-pescada. Milionàriazinha de sua avó. Bisontezinho de Foz Côa em diferido de Paris. Vontadezinha de ter um porta-chaves de BMW. Santa & Senhora. Tive de forçar com conhaque o açude represo do gasganete. De volta a casa, ainda estive para contar à minha mulher. Já nem sei porquê, não contei.

À aparição, dei apenas, cão velho que sou entre flores, um secreto adeus.

Inauguração da exposição de Fotografias de MMS (Margarida Macedo de Sousa) no Atmosfera M Porto no dia 8 de Maio.



 Com os primos Fernando e Regina Sousa Lopes

 Osvaldo Macedo de Sousa e Onofre Varela
 Com os primos Sousa Lopes

sábado, 6 de maio de 2017

Rosário Breve: Crónica à luz-roxa por Daniel Abrunheiro

Vejo mais pessoas a pé do que de pé. Curto e grosso: a pé, os do embuste anti-republicano de Fátima; de pé, as pessoas que (ainda) comemoram o 25 de Abril e o 1.º de Maio.
Por essas estradas, pirilampos bípedes de coletinho fluorescente: por essas praças, homens e mulheres livres por conta própria. Talvez sejam dois mundos irreconciliáveis. O mais certo é que o sejam de facto. Já me importei mais com isso. Já cheguei, até, a indignar-me com isso. Felizmente, os anos acumulados tornaram-me mais simples e mais bruto. Tenho repentes de ferocidade incendiária que um copito de branco fresco apaga sem grande esforço. Na base do que V. digo, está isto de eu vir do funeral de um Amigo. Aos 58 anos, o Tónio foi para nenhures. Daqui a uns tempos, o canteiro dos mármores resumi-lo-á a um nome entre duas datas. Pronto.
Na volta, vim impregnado da inútil revolta do costume. Entre gares rodoviárias, fui inútil e triste como uma biblioteca encerrada. As marcas quilométricas da auto-estrada sucediam-se sem fadiga, estúpidas, inocentes e branquinhas à maneira de cordeiros da Páscoa. Não pude ler. Não consegui escrever. Fui assistindo aos eucaliptos velocíssimos da vidraça. O vento que neles dava era o mesmo que me varre as ideias e as atitudes positivas. Senti-me, naturalmente, tramado: tenho mais coração do que cabeça. Para a cabeça, ainda há uns paliativos. Para o coração é que não há remédio.
E lá a minha terra, como estava a minha terra? Mais cansada, pareceu-me. O meu envelhecimento projectava-se nela como uma espécie de luz-roxa, dessa que antigamente, nas matinées dos “clúbios” recreativos dos pobres, punham os dentes e as fibras sintéticas da roupa a brilhar no escuro. Troquei com essa minha gente as palavras costumeiras. Alguma dessa minha gente é da classe “a pé”. Outra (minoritária, claro) é gente “de pé”. Não sei se me faço entender. Gosto dela toda, para bem dos meus pecados.
Lá deixámos o Tónio sufocado de flores de celofane. Fazia um calor mortífero. Lá fomos ao copito de branco fresco. Foi até ser meio-dia. Depois, cada qual foi para casa, fiquei eu sozinho no largo, dono tão-só de uma sombra vertical e implacável de toldo sem mesa nem cadeiras por baixo. A incerteza tomou conta de mim sem resistência. O branco fresco a sós é um bocadito pró triste. Um quase-terror assolou-me: “E se deixei de saber ler? E se nunca mais conseguir escrever?”
Pelos vistos, não aconteceu. Está um dia bonito, nesse mundo a que às vezes pertenço. Encerrei-me em casa, estores corridos contra a reverberação implacável de Maio. A realidade funciona sem meu concurso. Olha, telefona-me agora mesmo um dos meus Amigos ainda vivos. Tesouro, para mim. Dizemos chalaças. Dou por mim a rir-me como um chimpanzé num bananal.

Mas ai, Tónio. Ai, António Alves dos Santos (1958-2017).